Na autobiografia que Luiz Carlos Bresser-Pereira acaba de lançar, há uma relação entre a trajetória individual do ex-ministro de 87 anos e a do país que ele se propõe a pensar. Ao longo das 402 páginas, o leitor descobre um intelectual vibrante, profícuo e disposto a cruzar as fronteiras disciplinares da academia para aprender e inovar — tudo em busca de apresentar um pensamento original. É um Brasil assim, independente, que Bresser se dispõe a ajudar a construir, apesar dos percalços. É o que se extrai de um mergulho nas suas reflexões elaboradas após décadas de observação dos problemas nacionais.
O livro Bresser-Pereira: Rupturas do Pensamento tem formato de entrevista, realizada em seis longas conversas com o jornalista João Villaverde e o economista José Marcio Rego, entre 2017 e 2019. A obra reúne memórias pessoais, análise da economia, da política e da sociedade desde os anos 1930, teorias econômicas e propostas para o desenvolvimento do Brasil como nação, sua meta política e intelectual.
Estudioso, testemunha ou protagonista de momentos decisivos em Brasília, Bresser tem muito a contar. Trata-se de um homem que passou pela juventude católica, se formou em Direito e foi jornalista, publicitário, pesquisador e professor universitário no país e no Exterior, líder empresarial que ajudou a erguer um gigante do varejo, secretário de Estado e ministro de dois presidentes, José Sarney e Fernando Henrique Cardoso.
Tudo é relatado com impressionante detalhamento, dos bastidores políticos com interlocutores como Franco Montoro, Ulysses Guimarães, Ciro Gomes e Lula às negociações dos planos econômicos da década de 1980. A descrição da batalha contra a inflação e a dívida externa inclui os erros, os acertos e as frustrações de quem viveu aquele momento.
Também fala de suas relações no mundo acadêmico, como a afinidade com o professor da UFRGS Pedro Dutra Fonseca. Bresser cita os estudos do colega gaúcho sobre o governo Getúlio Vargas e ressalta que o Brasil teve seu maior salto à época. "Getúlio realizou um grande governo, nacionalista e desenvolvimentista. E Juscelino Kubitschek prosseguiu com a mesma estratégia", diz.
Um percurso tão diverso parece ter base em uma grande capacidade de aprendizagem. Logo nas primeiras páginas, resgata uma lição que assimilou na infância: "No 1º ano no Grupo Escolar Princesa Isabel eu tinha um colega ruivinho, que se sentava um pouco à minha frente e à direita. A professora Célia ia ensinando, e volta e meia o ruivinho gritava 'canja!', ou seja, 'fácil!'". No fim do ano, ele foi reprovado. E aprendi que jamais se deve menosprezar o adversário, não apenas o adversário pessoa, mas também o adversário conhecimento que você ainda não tem ou a ação que você ainda não realizou".
Bresser reconstrói a partir daí sua formação: a substituição da religião pelo ateísmo, a troca do direito pela sociologia e pela economia, o compromisso com republicanismo e o que considera fundamental: uma "descoberta pessoal" do Brasil.
Esse estalo acontece ao ler uma publicação de intelectuais do Iseb. "Terminada a leitura da revista, tomei uma decisão que mudou minha vida. Decidi que não seria mais juiz de direito, como era até então meu plano, mas sociólogo ou economista do desenvolvimento. Eu queria contribuir para a superação do atraso brasileiro e a pobreza de seu povo. Foi uma decisão definitiva."
Ele então passa a reconstituir a evolução de seu pensamento. É aqui que entra o intelectual independente e público. Citando seus artigos científicos e livros, vai apresentando ao leitor a produção de uma vida: a revolução industrial brasileira com coalizão de classes, o capitalismo tecnoburocrático, a consolidação democrática associada à revolução capitalista, a previsão da transição democrática brasileira, a inflação inercial, a teoria da reforma gerencial, a crítica à teoria econômica neoclássica e a sua "grande aventura intelectual" dos últimos anos, o novo desenvolvimentismo.
Trata-se, de acordo com Bresser, de uma teoria econômica e da melhor forma de organizar o capitalismo, sistema caracterizado pela competição entre empresas e países. A proposta, baseada na intervenção moderada do Estado na economia, prega o nacionalismo econômico, capaz de enfrentar os interesses dos países ricos e de impulsionar o desenvolvimento interno.
Para Bresser, o Brasil abriu mão da ideia de nação ao abraçar o neoliberalismo nos anos 1990, que segue forte no governo atual. "Essa foi uma das causas políticas pelas quais os governos FHC e Lula não fizeram o Brasil retomar o desenvolvimento econômico. Isso é impossível quando você pergunta para os seus concorrentes (os países ricos) quais políticas econômicas você deve tomar. Quando o Abilio Diniz e eu dirigíamos o Pão de Açúcar, não íamos perguntar aos diretores do Carrefour o que devíamos fazer", afirma. O caminho para romper a estagnação brasileira, completa Bresser, passa por voltar a ter um projeto de nação.
Próximo dos 90 anos de idade, ele segue na ativa, escrevendo agora um "livro crítico do capitalismo financeiro-rentista". "Eu sou o último dos aposentados", resume.