Foram necessárias 13 páginas manuscritas pela maior autoridade do Judiciário na manhã de ontem para por fim à nova investida da censura no país. Coube ao presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Dias Toffoli, cassar a decisão do Tribunal de Justiça (TJ) do Rio que permitira, no sábado, o recolhimento de obras com temática LGBT na Bienal do Livro.
Ao atender a um pedido da procuradora-geral da República, Raquel Dodge, Toffoli encerrou uma celeuma inaugurada na quinta-feira pelo prefeito do Rio, Marcelo Crivella. Em vídeo divulgado nas redes sociais, Crivella criticou a venda de uma história em quadrinhos da saga Os Vingadores, da Marvel, na qual dois personagens se beijam. Dizendo que a publicação continha "conteúdo sexual para menores", Crivella chegou a ordenar que fiscais da prefeitura confiscassem a obra, mas os exemplares se esgotaram rapidamente nos estandes.
Ainda no sábado, o youtuber Felipe Neto comprou e distribuiu de graça 14 mil livros com conteúdo LGBT. As obras foram entregues embaladas por plástico preto e com uma tarja informando que "este livro é impróprio para pessoas atrasadas, retrógradas e preconceituosas".
A ação do Crivella, que é pastor evangélico, deu origem a uma batalha judicial que só se encerrou com a manifestação de Toffoli. Na liminar concedida a Raquel Dodge, o ministro lembra que "o regime democrático pressupõe um ambiente de livre trânsito de ideias, no qual todos tenham direito a voz".
Toffoli salienta ainda que "as liberdades de expressão intelectual, artística, científica, de crença religiosa, de convicção filosófica e de comunicação são direitos fundamentais e essenciais à concretização dos objetivos da República Federativa do Brasil, notadamente o pluralismo político e a construção de uma sociedade livre, justa, solidária e sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade ou quaisquer outras formas de discriminação".
Em nota, a prefeitura do Rio disse que pretende recorrer. De acordo com a Procuradoria Geral do município, Toffoli "não examina o fundamento da medida tomada pelo município do Rio de Janeiro ao fiscalizar a Bienal do Livro: a defesa de crianças e adolescentes, com base no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA)".
Pouco depois da decisão de Toffoli, o STF voltou a se pronunciar sobre o tema. Atendendo a um mandado de segurança impetrado pela GL Events Exhibitions, organizadora da Bienal do Livro, o ministro Gilmar Mendes concedeu liminar semelhante, proibindo a prefeitura de fiscalizar o evento e sobretudo de recolher qualquer obra. Para Gilmar, a ação de Crivella "consubstanciou-se em verdadeiro ato de censura prévia", com objetivo de "desvalorizar a imagem de personagens homossexuais". "Salienta-se que em nenhum momento cogitou-se de impor as mesmas restrições a publicações que veiculassem imagens de beijo entre casais heterossexuais", comparou o ministro na decisão.
Para o advogado e sociólogo Renan Quinalha, a investida de Crivella reflete um crescimento da intolerância registrado no último ano do país. Professor da Universidade Federal de São Paulo e ativista dos direitos humanos, Quinalha diz que as tentativas de censura têm sido usadas por governantes para tirar o foco de problemas sérios, instrumentalizando a agenda conservadora com objetivos eleitorais.
— Eles criam um fato político que alimenta um pânico moral. Não começou agora, vem desde a Queer Museu (exposição de arte com temática LGBT cancelada em Porto Alegre após protestos). O problema é que já está quase se naturalizando. Como pode permitir que um prefeito invada uma Bienal do Livro se arvorando no direito de usar o Estatuto da Criança e do Adolescente para recolher publicações? Há aí um risco ao Estado Democrático de Direito — alerta Quinalha.
Produtora cultural com 34 anos dedicados ao setor, a secretária estadual de Cultura, Bia Araújo, se diz assustada com o crescimento da intolerância e do cerceamento à livre expressão artística. Temendo um retrocesso criativo, Bia diz ter carta branca do governador do Rio Grande do Sul, Eduardo Leite, para combater qualquer tentativa de intimidação ou censura:
— Fico entristecida em perceber que essa tentativa de controle passou a ser uma constante. A livre criação fica comprometida, e o mundo artístico passa a viver num ambiente de permanente tensão. Isso acaba levando os artistas à autocensura. Mas nós não vamos retroceder nunca. Tenho garantia do governador de que, se for necessário, vamos fazer qualquer enfrentamento, seja ao governo federal ou ao que for.