A relação de Sigmund Freud (1856 – 1939) com a arte foi ao mesmo tempo profícua e tumultuada. Boa parte da psicanálise emerge de temas que ele foi buscar nas páginas da melhor literatura. Ao mesmo tempo em que reconhecia essa dívida, Freud se ressentia um pouco dela — e por vezes lamentava que seus relatos de caso devessem tanto ao aspecto literário. Embora reconhecesse que muitos artistas haviam chegado ao inconsciente primeiro e por um caminho menos acidentado, também defendia uma separação estrita entre os campos. Com isso em mente, é fácil ver o caminho algo transgressor que A Arte de Tratar: Por uma Psicanálise Estética, livro que o médico e escritor Celso Gutfreind autografa nesta terça-feira (2), opta por enveredar. É uma coletânea de ensaios que busca o estético em Freud e tenta reunir aquilo que o próprio criador da psicanálise tentou separar.
Médico, psicanalista e escritor com 33 livros publicados, Gutfreind (um dos cinco indicados a patrono da próxima edição da Feira do Livro de Porto Alegre) dota os textos reunidos no livro de um tom que mescla o pessoal e o acadêmico. Gutfreind analisa 11 artigos publicados por Freud versando sobre estética. Junta a forma canônica do artigo acadêmico com reflexões pessoais de um analista que é também artista, além de apresentar alguns estudos de caso. Embora haja um objetivo técnico expresso na proposta, o de pensar o papel da estética na obra de Freud visando a uma elaboração da prática terapêutica, o livro é também um ensaio de crítica cultural que se deixa ler muito bem por quem não é do ramo.
“A literatura é a nossa saúde”
— Tenho essa sensação de que a clínica psicanalítica se assemelha muito ao que se faz na arte. Na arte, a gente reage com o sentimento de “gostei desse quadro”, “gostei desse texto”, “gostei dessa escultura”. Ou seja, aqueles trabalhos foram capazes de fazer uma representação, uma simbolização com harmonia, com beleza, com ambiguidade, e eu resolvi estudar mais a fundo isso. Freud baseia muito da sua teoria na interpretação de grandes obras, na sua visão da arte — conta o autor.
Os 11 textos compõem assim um breve apanhado ensaístico que analisa as ideias de Freud sobre a arte e a estética expressas ao longo de sua carreira. O texto analisado é também o título de cada capítulo, de Personagens Psicopáticos no Palco, de 1906, a Dostoiévski e o Parricídio, de 1928, passando por alguns de seus trabalhos mais conhecidos, como Gradiva (1907), Leonardo Da Vinci e uma Lembrança de sua Infância (1910), O Moisés de Michelangelo (1914) e Além do Princípio do Prazer (1920).
— É muito raro encontrar um texto do Freud que não aborde ou cite um elemento artístico. Precisei fazer um recorte e escolher artigos que falam especificamente sobre estética. Ou porque o Freud ali fazia perguntas que representavam para mim um aperfeiçoamento como artista ou como psicanalista ou porque fazia perguntas que considero importantes — explica Gutfreind.
Em uma prosa que permite por vezes aproximações poéticas, Gutfreind extrai algumas das grandes questões. O que é um artista? Que impulso o leva a realizar sua arte? Que tipos de interpretações são possíveis diante de uma obra de arte relacionadas a questões fundamentais como a transitoriedade da vida e a onipresença da morte como fato inevitável da existência humana?
À medida em que o livro avança, Gutfreind também vai enumerando impressões sobre como os insights teóricos de Freud a respeito da estética poderiam inspirar a prática clínica. E comentando também a proximidade que vê entre a psicanálise e a arte, duas atividades que demandam tempo em um mundo cuja maior neurose é a da aceleração, tendo como resultado equívocos e agressividade.
— O Gilles Deleuze cunhou a frase “a literatura é a nossa saúde”. A arte, as artes visuais, a poesia, são a nossa saúde. A gente aprendeu a transformar essa barbárie, que a gente também tem e também é, em uma coisa bonita. Segundo Freud, isso começa quando um bebê encontra uma mãe mais disponível para lançar um olhar maravilhoso às coisas do mundo. Isso é saúde, não essa confusão de hoje, fruto de um tempo apressado em que se boicota a contemplação, a “perda de tempo” e, com isso, a construção da arte, que demanda esse tempo. Nesse ponto, a psicanálise e a arte estão no mesmo barco — conclui o autor.
A ARTE DE TRATAR: POR UMA PSICANÁLISE ESTÉTICA
Artmed, 184 páginas, R$ 60 (impresso) e R$ 40 (e-book).
Autógrafos nesta terça (2), às 19h, na Saraiva do Moinhos Shopping.