Kelvin Falcão Klein
Professor da Escola de Letras da UNIRIO, autor de “Conversas Apócrifas com Enrique Vila-Matas”
O último livro de Peter Sloterdijk lançado no Brasil, Esferas I, apesar da ampla ambição filosófica que o aproxima das Críticas de Kant ou de Ser e Tempo de Heidegger, é um trabalho muito mais fluido e sedutor do que o de seus antecessores. Não apenas por conta da abundância de imagens que pontuam a edição tão cuidadosa, mas também pela ideia norteadora que organiza esse primeiro volume de uma trilogia cujas partes foram originalmente publicadas em 1998, 1999 e 2004: ou seja, a recorrência da imagem da esfera ao longo de toda a história da vida humana sobre a Terra (pois é precisamente o planeta uma das primeiras noções de esfera a atuar na economia psíquica do indivíduo, segundo Sloterdijk). O objetivo declarado de Sloterdijk é desviar a atenção filosófica da dimensão do "tempo", supervalorizada, em direção ao "espaço", em três formas específicas: o primeiro volume é subtitulado Bolhas, o segundo, Globos e o terceiro, Espuma.
O principal mérito desse trabalho de Sloterdijk – que começou a publicar seus livros no fim da década de 1970 – é a produção de uma imediata identificação do leitor com o universo conceitual que vai, aos poucos, sendo montado. Isso porque, uma vez estabelecida a metáfora do revestimento esférico como definição do ser (daquilo que o limita e também que permite sua expansão), os exemplos se proliferam em direção aos mais variados campos da experiência: o ovo e o útero como as esferas que tornam a vida possível; o olho, a boca aberta, o coração e o rosto, esferas responsáveis pelo desenvolvimento da identidade e do reconhecimento do outro; a ciranda e o pião que gira, esferas da infância, como o ninho e a bola; o balão e a lua, esferas da imaginação poética, como a concha ou o núcleo de certas flores; o seio, o grão e a semente, esferas que dão conta da renovação da vida; a coroa, a guirlanda, a grinalda e o anel, esferas que organizam os rituais e os sistemas de representação entre os indivíduos.
Em linhas gerais, é possível dizer que a noção primitiva de conforto que o ser humano traz desde o útero é o modelo para a construção dessas esferas mais amplas, coletivas, chamadas "pátrias", "países". A recorrência da circularidade na cultura teria como pano de fundo essa interminável busca por um estado de harmonia, de concórdia. Ao analisar uma moeda romana de 38 a.C., por exemplo, Sloterdijk ressalta aí tanto o redondo do artefato quanto a inovação na representação: dois rostos são postos de perfil, um olhando em direção ao outro, do pai para o filho. "No pequeno denário", escreve ele, "proclama-se a mais poderosa ficção religiosa e política da Antiguidade: a doutrina da monarquia de Deus através dos sucessores de César". O rosto pode representar tanto o que há de mais próximo – o rosto da mãe que o bebê tateia – quanto o que há de mais abstrato – a imagem do soberano cunhado na moeda. "Pela abertura do rosto", continua Sloterdijk, "o ser humano tornou-se um animal aberto ao mundo", "aberto ao seu próximo". Evocando temas que já estão em outros livros seus (No Mesmo Barco ou Regras para o Parque Humano), Sloterdijk usa o mote da "esferologia" para oferecer gradações sutis de debates amplos, a respeito de noções como pertencimento, imigração ou nacionalismo.
Com o uso das imagens, Sloterdijk consegue imprimir um ritmo de exposição argumentativa que é tanto narrativo quanto conceitual - acompanhamos a história ao mesmo tempo em que refletimos sobre a carga reflexiva da linguagem que oferece a história. Outro fator que contribui diretamente para a fruição de Esferas I é o continuado uso que Sloterdijk faz de referências tanto das artes visuais quanto da literatura – de Homero a Edgar Allan Poe, de Giotto a Magritte, passando por Rousseau, Duchamp e Andy Warhol, toda essa constelação de nomes e textos é fortemente centralizada na metáfora temática do círculo. Dessa forma, textos conhecidos recebem uma abordagem renovada, como quando Sloterdijk fala do canto das sereias na Odisseia a partir da ressonância, do eco e da criação de uma esfera imaterial que abarca os corpos; ou quando "anjo" e "idiota" se tornam duplos saídos de um mesmo ovo nas obras dos contemporâneos Dostoiévski e Nietzsche. Um pouco como a "esfera de Pascal", aquela ideia que Jorge Luis Borges desenvolve no ensaio de mesmo título publicado em Outras Inquisições, a argumentação de Sloterdijk parece estar em todos os lugares e em nenhum, paradoxo que é um entre os tantos efeitos de leitura desse grande livro.