Em seu novo livro, Michel Laub descreve o fim da privacidade – pelo menos como a conhecíamos. O tribunal da quinta-feira, sétimo romance do premiado escritor gaúcho, chega às livrarias nesta sexta-feira, com uma trama que expõe como, contra a vontade dos envolvidos, segredos íntimos de amigos e amantes podem se tornar públicos com apenas um clique, gerando consequências desastrosas.
O protagonista é José Victor, publicitário paulista quarentão que troca e-mails há anos com Walter, colega de profissão. Homossexual e soropositivo, Walter usa humor negro e escatológico para lidar com a aids, mesmo tom que José emprega para falar de seu casamento em dissolução e de sua amante de 20 anos. O diálogo, displicente como uma conversa de bar, ganha outra dimensão quando Teca, ex-mulher de José, descobre a senha do e-mail do ex-marido e se horroriza com a leitura, selecionando trechos e fazendo-os circular pelas redes sociais. É aí que começa o julgamento: uma enxurrada de comentários e mensagens que condenam as falas e as posturas dos evolvidos no diálogo, o que pode abalar reputações e carreiras profissionais.
Para Laub, o discurso cada vez mais intolerante das redes sociais é um dos temas centrais de O tribunal da quinta-feira, bem como a impossibilidade de viver à margem desse tipo de julgamento:
– No livro, a vida do narrador desmorona por causa de algumas piadas que ele nunca quis tornar públicas e porque ele se apaixona estando casado. Isso é proporcional? Quem julga esses atos tão severamente está isento de fazer coisas equivalentes algum dia na vida? Ao mesmo tempo, e a par da defesa que esse narrador faz de si mesmo, ainda é possível viver sob parâmetros de privacidade e liberdade individual pré-redes sociais? O discurso dele a favor disso também não está obsoleto, calcado em valores que não fazem mais sentido?
Para abordar o tema de maneira aprofundada, o escritor assumiu alguns riscos. O mais notável deles é tomar o lugar de fala de Walter e também de Dani, amante de José, com pouca idade e posição social desprivilegiada.
– Há a discussão sobre se um autor heterossexual pode escrever sobre o universo gay, se um autor branco pode escrever sobre personagens negros etc. É um debate sobre legitimidade. Minha posição quanto a isso sempre será a favor da liberdade da ficção. Cada autor pode fazer o que quiser. Agora, é evidente que ele precisa arcar com os resultados daquilo que escolheu fazer, e esses resultados são avaliados de acordo com os parâmetros de cada época.
Ambientado em 2016, O tribunal da quinta-feira é uma meditação sobre os riscos de uma sociedade cada vez mais vigiada, na qual diálogos em diferentes plataformas ficam armazenados por tempo indeterminado, podendo aparecer repentinamente (e perigosamente) fora de contexto. Não parece um processo reversível, mas seria menos desastroso se usuários das diferentes redes sociais ponderassem que uma foto ou um e-mail vazado não resumem a vida ou o caráter de alguém. Ler este livro é um bom modo de iniciar essa reflexão.
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Entrevista – Michel Laub
As redes sociais são pródigas em escândalos como o que está exposto em O tribunal da quinta-feira. Você se inspirou em algum caso específico?
É claro que, ao escrever, você junta coisas que viu aqui e ali. Mas seria empobrecer o livro ficar somente em uma reprodução da realidade, porque a ficção traz muito mais possibilidades. A trama fala mais do espírito de uma época do que de casos específicos.
É um espírito de que cada um pode ser juiz do próximo?
Juiz dos outros todo mundo é, isso é da natureza humana. O que mudou é que hoje todo mundo tem plateia. E, por causa dos algoritmos que aproximam pessoas com os mesmos interesses e opiniões nas redes, essa plateia está ali para concordar com o juiz, ou para estimular que ele se radicalize ainda mais. O contraditório que atenuaria ou alteraria esse processo está cada vez mais raro.
Um de seus personagens é soropositivo. Por que resolveu abordar a aids na trama?
Porque, se o livro fala basicamente sobre tolerância, o sexo é um mote quase óbvio – um elemento de identidade que é confrontado na afirmação individual do narrador, do seu melhor amigo, dos demais personagens. A aids não foi só uma doença, ela teve também implicações simbólicas na cultura, no comportamento, na própria história, tudo a partir de um debate sobre comportamento sexual – que, de certo modo, dura até hoje. Toda a celeuma sobre humor do livro passa, também, por esse tabu de mais de 30 anos – como falar dessa doença, que vocabulário e tom usamos para tratar dela, uma outra forma de perguntar que vocabulário e tom usamos para tratar de sexo.