Grande nome da literatura gaúcha, Josué Guimarães (1921 – 1986) teria uma identidade oculta de seus leitores – e até mesmo de seus amigos e familiares. Pelo menos é o que propõe um artigo que começou a circular nas redes sociais neste domingo, segundo o qual Guimarães seria "o espião Gosha, a serviço da KGB soviética".
No entanto, quem conviveu com o autor de A ferro e fogo e Camilo Mortágua assegura que não é bem assim.
– Quem, assim como eu, conheceu Josué sabe que isso é uma barbaridade. Um absurdo, como tantos outros que aparecem na internet. Fico admirado que as pessoas repitam coisas como essa nas redes sociais, pois fazer isso é uma indignidade – classifica o escritor Sergio Faraco.
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O artigo, publicado no site Videversos, recupera informações divulgadas há alguns meses no jornal português Expresso, mas que ainda não haviam repercutido no Brasil. Em 12 de março, o periódico lisboeta divulgou uma longa reportagem na qual analisava o arquivo Mitrokhin, maior acervo de informações sobre os serviços secretos soviéticos, depositado na Universidade de Cambridge. A matéria levantava personagens que constituíam uma rede de informação da KGB na capital portuguesa. Entre eles, estaria o gaúcho Josué Guimarães.
Segundo o texto, Guimarães teria sido incluído nessa rede em 1976, conhecido como agente Gosha, participando de 42 reuniões – 38 em Lisboa, duas no Rio de Janeiro e duas em Buenos Aires.
"Os dados biográficos e profissionais de Josué Guimarães – como acontece, aliás, com todas as outras fichas individuais transcritas por Vasili Mitrokhin consultadas pelo Expresso – são extremamente pormenorizados e estão corretos", diz o jornal português.
O escritor de fato morava nessa época em Portugal, sendo correspondente do jornal Correio do Povo, além de ter seu próprio periódico, o Chaimite. Mas, para o jornalista Flávio Tavares, autor de Memórias do esquecimento, classificar Guimarães como um agente da KGB é uma "absurda balela".
– É algo típico de quem não conhece o trabalho dos jornalistas e dos correspondentes internacionais. Os diplomatas são espiões natos, mas ineficientes, e se servem, fundamentalmente, do trabalho dos jornalistas políticos e econômicos para abastecerem seus relatórios de Embaixada e, assim, demonstrarem serviço – afirma Tavares. – É até possível, ou mesmo provável, que os soviéticos dessem um nome de guerra, "Gosha", no caso de Josué, para identificar a fonte da notícia. Duvido, porém, que fosse um espião e remunerado – conclui.
Tavares lembra que, bem relacionado, Guimarães tinha amigos da embaixada soviética, que possivelmente incluíam em seus relatórios informações de teor jornalístico ouvidas do escritor. No entanto, isso não o colocaria na posição de agente.
– Em uma vez que viajou a Buenos Aires para lá me visitar, Josué me disse que iria almoçar ou jantar no dia seguinte com o adido de imprensa ou algo similar da embaixada soviética, que ele conhecera em Lisboa, e do qual se tornara amigo – lembra Tavares.
Filho de Josué, Rodrigo Guimarães viveu com o pai em seu período lisboeta. Ele também afirma com segurança que o autor jamais fora espião.
– Meu pai era um homem de contatos políticos. Brizola ia lá em casa, assim como Miguel Arraes. Não tenho nenhuma informação sobre isso, mas não seria nada surpreendente se, no final da ditadura militar e da Guerra Fria, ele tivesse alguma relação com alguém da embaixada soviética. Esse contato deve ter ficado registrado em algum lugar. Mas isso é muito diferente de dizer que ele era um espião – afirma Rodrigo, que era adolescente no período que a família viveu em Portugal.
Amigos de Josué Guimarães também demonstraram surpresa diante da suposta aproximação com a KGB, uma vez que o perfil político do escritor seria incompatível com o de um agente de inteligência comunista. Embora conhecido como um homem de esquerda, Guimarães não se afirmava como um comunista, sendo mais identificado por seus ideias democrático e pela proximidade com Brizola e Darcy Ribeiro.
Outro traço muito conhecido de Guimarães também colabora com a descrença dos amigos. Falante, jamais deixava de expor seu ponto de vista qualquer tema, sendo justamente o oposto do perfil que se espera de um espião.
– Josué não escondia o que pensava. Era uma pessoa de opiniões políticas conhecidas. Seria um espião meio incompetente, eu acho – faz graça o escritor Luis Fernando Verissimo.