A capacidade de inventar, imaginar e acreditar coletivamente é uma das características que distinguiram o Homo sapiens das demais espécies e possibilitaram a existência de vários elementos que organizam a sociedade hoje em dia: leis, moedas, religiões, nações, idiomas e outros. Essa singularidade, descrita pelo historiador israelense Yuval Noah Harari no best-seller Sapiens: Uma Breve História da Humanidade (Companhia das Letras), rendeu inspiração para a peça Ficções, estrelada pela atriz Vera Holtz. O monólogo chega a Porto Alegre nesta sexta-feira (10) para uma temporada de sete apresentações no Theatro São Pedro e convida o espectador a refletir sobre sua própria existência, o que é "real" e o que foi "inventado".
— É um espetáculo cabeção, mas é um cabeção pop, que leva você a uma reflexão individual do coletivo. Você terá um ponto de vista seu sobre a espetacular capacidade que o homem tem de inventar histórias e acreditar nas histórias que ele criou — afirma Vera.
O enredo teatral escrito e encenado por Rodrigo Portella tensiona: será que a humanidade está vivendo melhor que seus ancestrais? Será que está usando sua habilidade ímpar de criar ficções para construir uma vida melhor para o coletivo? Em um dos teasers divulgados na internet, Vera narra que são "8 milhões de indivíduos ansiosos, angustiados, à beira de uma hecatombe", que sentem que "a vida só vale a pena nos feriados prolongados", e provoca: "Vocês estão confortáveis? Vocês estão satisfeitos?".
Mas a reflexão da própria atriz é otimista. A paulista de 70 anos acredita que a humanidade tem a capacidade e os meios para construir narrativas melhores para si mesma daqui para frente se agir de forma coletiva:
— O homem trabalha com um sistema de crenças. Ele tem religiões, ideologias que só acabam se vierem outras. A reflexão é que, se tudo é criação, significa que a gente pode recriar. Se a gente cria, a gente "descria", faz novas crenças, novas ficções, novas ideologias. E isso abre outra reflexão: se não estamos felizes, por que não se quer mudar? Acredito que mudar depende da gente se organizar para isso, porque coletivamente o homem consegue fazer o que ele quiser.
Transpor para o teatro um livro "cabeção" sobre a história da humanidade, com mais de 23 milhões de cópias vendidas em todo o mundo desde 2011 — ano da publicação em hebraico —, foi um desafio grande e que partiu de um lugar de utopia e muita incerteza sobre o sucesso, segundo a atriz. Mas acabou funcionando. A peça estreou em setembro do ano passado, no Rio de Janeiro, e hoje soma mais de cem apresentações e 37 mil espectadores em cidades como São Paulo, Curitiba, Belo Horizonte, Brasília e São José do Rio Preto.
Espetáculo marcou o retorno da atriz após três anos longe dos palcos
Segundo o produtor-executivo da peça, Wesley Cardozo, a escolha de Vera Holtz como protagonista partiu do desejo de que a história da humanidade não fosse, mais uma vez, contada a partir da voz de um homem. Na peça, a personagem não tem nome, é apenas um Homo sapiens fêmea que narra o percurso humano ao longo do tempo.
Ficções é o espetáculo que marcou o retorno da atriz após três anos longe dos palcos e, segundo ela, pode ser descrito como um "falso monólogo". Isso porque o texto narrado é pontuado a todo momento pela música do instrumentista italiano Frederico Puppi, que sobe ao palco, toca violoncelo e dialoga com a narradora.
— Frederico veio aqui em casa um dia para nos conhecermos e ver se conseguiríamos improvisar juntos. No momento em que abri a porta, já entrei em comunhão com ele. Ele é italiano, e eu sou neta de italianos, sou Fraletti. Tenho 50 e poucos primos, minha mãe teve 14 irmãos, e tenho uma relação profunda com essa família imensa. Então, pensei: "Pô, é meu primo que chegou aqui" — relembra Vera.
A montagem também vem sendo descrita como uma jam session, marcada pelo improviso, pelo jogo com a plateia e pela presença de toda a equipe técnica em cima do palco — do diretor de cena ao contrarregra. E quem for ao teatro nas próximas semanas talvez flagre Vera recebendo no ouvido alguma linha perdida do roteiro.
— O espetáculo é sobre cooperação, e isso quer dizer que você verá todo mundo em cena. Esse é um trabalho em que estou ali presente no estado em que eu estiver, e, se estou com a memória meio estranha naquele dia, tenho um ponto no ouvido em que me dão a deixa. Não tem truque, a gente vai fazendo de acordo com a energia que está vindo da plateia. É um teatro expandido, capilarizado, que vai além da quebra da quarta parede.
Em Porto Alegre, a equipe do espetáculo se prepara para três dias de apresentações na primeira semana e mais quatro dias na outra, com duração de 80 minutos cada. Como estão há mais de um ano rodando o país, os profissionais já puderam sentir a temperatura da plateia, que invariavelmente responde com emoção:
— Tem pessoas que ficam presas, refletindo, já na primeira frase que eu falo: "O Homo sapiens é metade DNA, metade suas escolhas". Algumas são mais resistentes, a ficha cai depois, mas para outras a ficha já começa a cair ali mesmo. No fim do espetáculo, normalmente me falam algo como "Me diverti muito, ri muito e chorei também". Que bom que é assim. Acho que a função do teatro é refletir e se emocionar. Quanto mais a gente fica no teatro, mais entende sua potência — conclui Vera.
"Ficções", com Vera Holtz
- Nesta sexta (10) e sábado (11), às 20h, e domingo (12), às 18h. Na semana que vem, de quinta (16) a sábado (18), às 20h, e domingo (19), às 18h.
- Theatro São Pedro (Praça Marechal Deodoro, s/n°), em Porto Alegre.
- Ingressos a partir de R$ 80, à venda pelo site theatrosaopedro.rs.gov.br (com taxa) ou na bilheteria do teatro (sem taxa).