A montagem de Esperando Godot, de Samuel Beckett, que o diretor Luciano Alabarse estreou em Porto Alegre no final de março, no Teatro Oficina Olga Reverbel, e que cumpre nova temporada no Teatro Renascença (veja detalhes ao final do texto), encontra um equilíbrio orgânico entre tradição e renovação: é profundamente beckettiana e, ao mesmo tempo, tem dicção própria.
Setenta anos após a estreia mundial da peça, em 1953, no pequeno Théâtre de Babylone, em Paris, dirigida por Roger Blin, Godot segue provocando o mesmo misto de encantamento e perplexidade que marcou seus primeiros anos de recepção. Virou folclórica a definição de Vivian Mercier em uma crítica (elogiosa) de 1956 segundo a qual esta é "uma peça em que nada acontece, duas vezes", em referência a seus dois atos.
Dois sujeitos, Estragon (interpretado aqui por Sandra Dani) e Vladimir (Janaina Pellizzon), esperam por um certo Godot, de quem pouco se sabe. Enquanto isso, conversam sobre temas que vão desde questões comezinhas, como a dificuldade de tirar uma bota do pé, até reflexões sobre religião e a existência, aventadas com a despretensão de uma conversa de botequim — Gogô e Didi (seus apelidos) são clowns ao estilo de Charles Chaplin, que podem nos fazer rir, chorar e pensar.
A certa altura da espera, chegam Pozzo (Arlete Cunha) e seu servo Lucky (Lisiane Medeiros), que espelham as relações de exploração recorrentes na história da humanidade — questão nada secundária que retorna em outros momentos da peça. Há ainda um menino (Valquiria Cardoso) que aparece como um mensageiro de Godot, mas que também não esclarece muito a respeito do que está acontecendo.
Muito se especulou ao longo das décadas sobre o significado de Godot. Seria Deus (em inglês, god)? Seria a morte (em alemão, Tod)? O próprio Beckett sempre fez questão de desprezar todo esforço de fixar uma mensagem única e definitiva em sua obra. É justamente essa interrogação que motiva os espectadores a projetarem suas experiências e sua realidade no palco conforme a época e o local. O impacto do Godot montado por Donald Howarth na Cidade do Cabo, em 1980, durante o apartheid sul-africano, foi diferente daquele experimentado pelo público da versão de Susan Sontag em Sarajevo, em 1993, durante a Guerra da Bósnia.
Alabarse parece compreender essa dicotomia entre o universal e o particular. Preservando a essência dramática de Beckett, seu Godot é ambientado em um cenário (idealizado pelo próprio diretor) bem mais preenchido do que a minimalista árvore em uma estrada no campo prevista no texto. Há montes de feno, tonéis, pneus e sacos cheios de lixo espalhados pelo espaço cênico. A árvore é construída com peças de metal. Não temos referências do tempo ou do local em que ação se passa, como sempre, mas de alguma forma reconhecemos o mundo em que vivemos, ameaçado por uma catástrofe climática. Os figurinos, criados pelo professor, diretor e ator Zé Adão Barbosa, vestem Gogô e Didi com trajes feitos de retalhos e reforçam a percepção de um mundo pós-apocalíptico — ou talvez pré-apocalíptico, como o nosso. A iluminação soturna e matizada de Maurício Moura e João Fraga completa este espetáculo visualmente deslumbrante, permeado pela música do compositor de vanguarda alemão Karlheinz Stockhausen.
São cinco grandes atrizes dos palcos gaúchos de diferentes gerações nos papéis masculinos, em desempenhos que certamente serão lembrados por muito tempo. Sandra, Janaina, Arlete, Lisiane e Valquiria decantam o texto do dramaturgo irlandês como se fosse vinho de guarda, extraindo suas grandes questões: impossibilidade de comunicação, falta de certezas, confusão temporal.
Não é diversão fácil, mas valeu a pena esperar por este completo e um tanto ousado Godot de Alabarse.
Esperando Godot
- De sextas a domingos, sempre às 19h, até 25 de junho, no Teatro Renascença (Av. Erico Verissimo, 400), em Porto Alegre
- Ingressos a R$ 60, à venda pelo site sympla.com.br (com taxa) ou na bilheteria do teatro, uma hora antes das sessões (sem taxa)
- Às sextas, após o espetáculo, há debate com um representante da Sociedade Psicanalítica de Porto Alegre (SPPA)