Sabe-se que um grande espetáculo pode marcar a vida de um espectador, afinal, esse é o poder do teatro. O lado menos conhecido do público é quando um trabalho muda a vida do próprio artista, ao abordar um trauma ou momento difícil do passado. Longe da autoajuda, a arte tem se beneficiado há tempos da matéria-prima autobiográfica. Nunca se falou tanto sobre isso quanto hoje: autoficção, teatro documental, biodrama etc. Os conceitos são vários, mas não é preciso ser especialista para se comover.
Conheça as histórias por trás de três espetáculos que foram criados por artistas do teatro em situações críticas de suas vidas – e que emocionaram o público nos últimos anos.
Ato I – Depois da queda de Luciano Mallmann
Luciano Mallmann sonhava em ser uma estrela do Cirque du Soleil. Formou-se no curso superior de Publicidade e Propaganda, mas levava a vida de ator como uma segunda carreira. Tinha medo de largar tudo para ser artista. Mesmo assim, resolveu tentar.
Depois de passar três meses no Rio trabalhando no média-metragem Bola de Fogo (1997), de Marta Biavaschi, decidiu ir embora de Porto Alegre para se matricular na tradicional escola de teatro da Casa das Artes de Laranjeiras, a CAL. Daí, vieram uma oficina de atores da Globo, a peça A Dama do Cerrado (1996), com Susana Vieira e Otávio Augusto, e a novela da Manchete Mandacaru (1997).
Dedicou-se à dança e, enfim, apaixonou-se pela acrobacia. Descobriu que queria fazer isso pelo resto da vida, ou melhor, até o corpo não responder mais devido à idade. Tornou-se um acrobata exemplar e logo estava ensinando os outros. Destemido, sofreu o maior tombo de sua vida em um exercício aparentemente fácil, que poderia ser executado, segundo ele, por uma criança. Foi durante um curso de reciclagem na Escola Nacional de Circo. Até hoje, Luciano não sabe exatamente o que aconteceu, mas provavelmente passou o tecido de forma errada por uma das pernas quando estava de ponta cabeça em meio a uma acrobacia e, em vez de cair apenas a curta distância correspondente ao espaço da folga que deveria ter deixado no laço, foi ao chão. Havia um colchão, mas não foi suficiente para evitar que sofresse uma lesão na medula e se tornasse tecnicamente tetraplégico – ele tem preservados os movimentos dos membros superiores, embora tenha perdido um pouco da força da mão direita e a sensibilidade embaixo dos braços.
Desembarcando em Porto Alegre em uma cadeira de rodas, Luciano voltou a trabalhar com publicidade, depois retomou o ofício de ator e retornou, mais uma vez, à publicidade. Inspirado em uma participação no filme Bio, de Carlos Gerbase, que foi rodado entre 2015 e 2016 e permanece inédito no circuito de cinemas, concluiu: era hora de contar sua história no palco – e de lá nunca mais sair. Foram necessários 13 anos desde o acidente para que estreasse no Teatro do Instituto Goethe, em março deste ano, o espetáculo de sua vida: Ícaro, peça que escreveu com histórias de cadeirantes baseadas em sua experiência e em relatos de pessoas que conheceu.
– Depois da deficiência, nunca havia pensado em falar sobre isso. Meio que fugia do assunto. Na peça, eu conto que nem gostava da palavra “cadeirante”, pois era um cadeirante enrustido – brinca Luciano, em seu apartamento no centro da Capital, onde mora com a cadela Júlia. – Mas sempre gostei muito dessa linha de teatro de biodrama. Acho que tinha vontade de fazer isso, mas nunca soube como. Talvez as coisas precisem de tempo.
Luciano ensaiou com a diretora Liane Venturella na mesma sala de estar em que recebeu a reportagem de ZH. O texto estava praticamente pronto, mas ele não sabia como terminá-lo. A ideia veio quando o artista visual Walmor Corrêa pediu informações sobre a lesão medular para criar o programa que seria distribuído ao público antes das sessões. Luciano recuperou o laudo médico e julgou ter encontrado a cena final. Liane e Monica Tomasi, a autora da trilha sonora, concordaram.
– Quando li o laudo, morri chorando – lembra o ator.
Como não havia dinheiro, Ícaro foi um investimento de risco para ele e para a equipe, que topou se envolver no projeto sem a garantia de receber cachê. Porém, desde a estreia, foram mais de 30 sessões na Capital e em diferentes cidades do Estado. Todos foram pagos, como conta o ator, que também pôde receber seus honorários.
Luciano já pensa no próximo trabalho, mas deseja manter Ícaro como parte de seu repertório. Ainda quer levá-lo ao Rio, onde sofreu o acidente, e a Brasília, onde passou seis meses se adaptando à rotina de cadeirante em um hospital da Rede SARAH de Reabilitação. Para facilitar as viagens, até bolou uma versão do espetáculo feita com luminárias para que ele mesmo possa manipular a iluminação. Hoje, dedica-se diariamente à produção da peça.
– Agora é uma questão de articular os caminhos – anima-se o ator. – Se não pintar patrocínio, vou com minha cadeira e minhas luminárias e apresentarei na casa das pessoas. Quero muito fazer esse espetáculo.
O mais surpreendente no processo de criação, para ele, foi descobrir que as questões familiares dos personagens emocionavam-no mais do que a própria situação de cadeirante que motivou a peça em primeiro lugar. Quando terminou de escrever, percebeu que havia um pouco de si em todas as histórias, pois as relações com os pais estão sempre presentes, em maior ou menor medida. Luciano tem o apoio da mãe. O pai ele perdeu há cinco anos em decorrência de um câncer no duodeno.
– Cada vez que eu pensava nele durante os ensaios, me dava uma coisa. Ele viu A Mulher Sem Pecado, mas essa peça ele não viu – lembra.
A Mulher Sem Pecado, de Nelson Rodrigues, foi o trabalho que significou o retorno de Luciano aos palcos, em 2011, sete anos depois do acidente. Empolgado com uma breve participação que havia feito na novela da Globo Viver a Vida (2009-2010), na qual Alinne Moraes interpretava uma jovem tetraplégica, o ator concluiu que precisaria empreender por conta própria para não depender da boa vontade dos outros. O diretor Caco Coelho, então, apresentou-lhe e encenou com ele o célebre texto de Nelson em que um homem se finge de cadeirante para testar a fidelidade da mulher. Por aquele trabalho, Luciano e Manu Menezes levaram o prêmio Açorianos de Teatro de melhor produção, e Vanessa Garcia, de melhor atriz. Foram seis anos longe do teatro até a estreia de Ícaro.
– Nunca me considerei um militante da causa da acessibilidade e da inclusão, e me sentia culpado por isso. Minha forma de contribuir era viver, ir para o trabalho e assim desmistificar o fato de estar em cadeira de rodas. Convivendo comigo, as pessoas começariam a perceber onde tem rampa ou não, por exemplo. Mas Ícaro não foi friamente calculado. O que saiu foi a forma como encaro a deficiência.
Luciano imaginava que os cadeirantes estariam mais presentes nas apresentações do que efetivamente estiveram, mas considera positivo o fato de ter tido até três cadeirantes em uma única sessão. Avalia que mesmo o público em geral vai menos ao teatro do que ao cinema. Refletindo sobre a representatividade na cena, ele gostaria de ver mais atores cadeirantes em papéis que não tematizem necessariamente essa condição.
– Por que não um Hamlet em cadeira de rodas? – questiona.
Durante a entrevista, Luciano jamais se lamenta. Considera que, se não tivesse se acidentado em 2004, não teria escrito Ícaro. O futuro ele vê com bom humor:
– Até me disseram: “Torço para que voltes a andar”. Respondi: “Espera mais um pouco, porque preciso fazer a peça. Ainda tem uns anos pela frente”.
Ato II – Castanha não morreu
Há tempos, a morte ronda a vida do ator e performer João Carlos Castanha. Ele já perdeu a mãe, o pai, uma irmã e um sobrinho. Seu método para lidar com isso no teatro é singular: recorrer ao bom humor. Foi assim que estreou, em 2014, o espetáculo Até o Fim, que ele mesmo escreveu e estrelou, contracenando com a atriz Rose Canal. Dirigida por Zé Adão Barbosa, parceiro artístico de longa data, a peça de teor fortemente autobiográfico foi a maneira que Castanha encontrou para caçoar de sua própria finitude. A inspiração veio do filme Blue (1993), de Derek Jarman, no qual uma tela azul serve como único recurso visual de uma colagem de sons que remetem à experiência do cineasta inglês com a perda da visão e, de forma mais abrangente, à condição de soropositivo. Jarman morreu em 1994.
– Sempre penso na minha morte – declara Castanha, com uma gargalhada, na Casa de Teatro, em Porto Alegre, onde recebeu a reportagem. – Quando eu tinha 20 anos, achava que morreria aos 30. Aos 30, achava que seria aos 40. Sempre pensei na morte, mas conforme vivemos e aprendemos as coisas, o medo passa. A morte é um enigma. Não sabemos o que vai acontecer depois – diz o ator, hoje com 56 anos.
Em Até o Fim, Castanha interpretou um desbocado paciente com uma doença nunca explicitada, internado em um hospital no qual é atendido por uma enfermeira carrancuda, vivida por Rose. Na tensão da relação entre os dois, estabelece-se um afeto fraternal. A enfermeira, por exemplo, decide valorizar a própria beleza depois que o paciente a incentiva a usar maquiagem. Mas não há dúvida de que o protagonista da peça é o paciente, que nunca tem o nome revelado. Trata-se de um alter ego de Castanha: um artista que vive entre o teatro e as performances em boates LGBT e que ama o cinema. Boa parte da graça dessa comédia está na persona que ele criou, um sujeito que satiriza a si mesmo e aos outros sem se preocupar com o politicamente correto.
– Tudo tem um lado triste e um lado engraçado, depende da maneira como se conta – argumenta o ator. – Quem fala a sério cria uma barreira em relação às pessoas. Por meio do humor, elas ficam mais receptivas.
Apesar do bom humor, Até o Fim é também um testamento emotivo de um artista que sobreviveu aos loucos anos 1980. Entre experiências com sexo, drogas e acidentes, Castanha se considera “um milagre divino”. Certa vez, chegou em casa “com os olhos saltando” e jurou que, se saísse vivo, jamais repetiria a dose. Não cumpriu a promessa.
– Já tive de tudo. Tenho HIV há 20 e poucos anos. Tem gente que nasce diabético ou que tem doença no coração. Problema todo mundo tem. Bobagem. Faz parte da vida – ensina.
A peça estreou no Teatro do Museu do Trabalho, em Porto Alegre, em agosto de 2014, em um momento de visibilidade para o artista, que havia sido tema do filme Castanha, de Davi Pretto, uma das produções mais importantes do cinema gaúcho, com exibição no Festival de Berlim. O longa conta com uma cena da peça, que ainda não havia estreado – o trecho foi montado especialmente para a gravação, com uma plateia de convidados. O espetáculo mesmo acabou estreando antes do filme.
Em meio à grande fase, Castanha ouviu interlocutores manifestarem o medo de que a fama lhe subisse à cabeça. Ele sempre considerou a hipótese absurda. Acredita que continua sendo “o mesmo bagaceiro de sempre”. Aos espectadores que lhe perguntam o que é verdade e o que é mentira nos causos contados por seu alter ego em Até o Fim, ele tem uma resposta direta: é tudo verdade.
– Por que vou contar uma história que é mentira? Minhas histórias são sempre verdadeiras, as pessoas é que não acreditam.
A partir da repercussão da peça e do filme, Castanha orgulha-se de ter contribuído para que o público de suas performances em boates LGBT começasse a frequentar o teatro e que os artistas do teatro também fossem conferir seu trabalho em casas noturnas (“Por mais que a classe artística seja cabeça aberta, muita gente tinha preconceito”, diz). Explica que confere às duas atividades a mesma seriedade. Hoje, apresenta-se em cinco boates, de quarta a domingo. Só no sábado são três shows, das 20h às 5h da madrugada. Acredita que a noite é uma escola de improviso. Embora encarne distintas personagens, a mais conhecida é Maria Helena Castanha, assim batizada porque ele queria um nome de “mulher rica”. Mas quem é Maria Helena?
– Ela é muito mentirosa – descreve Castanha. – Diz que é da alta sociedade, mas deixa escapar que pegou ônibus. Fala dos maridos, das relações. Nem eu sei o que ela vai dizer, parece que a incorporo.
A personagem não aparece na peça, mas, na cena final, o paciente interpretado por Castanha dubla a cantora cubana La Lupe na canção Puro Teatro: “Teatro / Lo tuyo es puro teatro / Falsedad bien ensayada / Estudiado simulacro” (“Teatro / O teu é puro teatro / Falsidade bem ensaiada / Simulacro estudado”).
De todas as mortes que circundaram a vida do artista, a mais sentida foi a da mãe, há cerca de um ano. Do pai ele era distante. Celina Castanha foi uma compreensiva apoiadora da carreira do filho. Certa manhã, ao chegar de uma boate, Castanha recebeu uma ligação do hospital em que sua mãe estava internada por um problema pulmonar. Sua presença foi solicitada em razão da deterioração da saúde dela, mas percebeu que o estavam avisando que já estava morta.
– Quando morre alguém, o pior que pode acontecer é o remorso de ter feito algo ruim para aquela pessoa. Com minha mãe, não teve isso. Ela tinha uma cabeça maravilhosa. Se as pessoas iam se drogar, ela dizia: “Droguem-se aqui dentro; na rua é perigoso”. Sempre foi minha amiga.
Castanha se considera um vampiro. Não gosta de sair de casa durante o dia. Morando sozinho no apartamento que compartilhava com a mãe, tem como programa preferido rever a coleção de 95 DVDs com clássicos de Luchino Visconti e David Lynch – ambos são citados em Até o Fim. Seus planos incluem interpretar uma peça de Julio Zanotta Vieira sobre Luiza Felpuda, homossexual que foi dona de um bordel em Porto Alegre, e dirigir um filme com roteiro seu sobre um artista que imagina, à beira da morte, transformar-se no bailarino japonês Kazuo Ohno.
Em sua longa trajetória, que inclui uma homenagem no Prêmio Açorianos de Teatro de 2010, Castanha garante não se preocupar com a escalada do politicamente correto. A quem interessar, admite: não é de guardar nada.
– O que eu tenho que falar, eu falo. Outro dia, fiz um show com uma música da Marina, e ninguém sabia quem é. Tem uma artista que nunca ouviu falar de Clara Nunes. A falta de informação me deixa de cara – dispara, e, no único momento de nostalgia da entrevista, acrescenta:
– Nos anos 1980, pelo menos as pessoas eram muito inteligentes.
Ato III – Carta ao pai de Patrícia Fagundes
Durante a divulgação de Natalício Cavalo, que estreou em 2013 no Teatro de Câmara Túlio Piva, em Porto Alegre, a diretora Patrícia Fagundes omitiu aquela que talvez fosse a informação mais relevante sobre o trabalho. O segundo espetáculo da Trilogia Festiva da Cia. Rústica de Teatro, que havia sido iniciada com Clube do Fracasso (2010) e ainda não teve sua terceira parte produzida, contava a história de um sujeito folclórico de biografia inverossímil. Radialista, produtor de rodeios e soldado da Brigada Militar, para citar apenas algumas de suas ocupações, o personagem-título era um gaudério que palmilhou diferentes rincões e, nesse caminho, colecionou amores, filhos e desafetos.
Só depois que as críticas sobre a peça já haviam sido publicadas Patrícia revelou ao repórter que aqui escreve, em uma ligação telefônica:
– Natalício Cavalo era meu pai.
Hoje, a diretora e professora de teatro da UFRGS avalia que a decisão de não falar sobre isso teve duas razões: ela queria que a montagem fosse vista como uma narrativa independente e também estava tomada por certa timidez. No fundo, procurava evitar que a realidade contaminasse a experiência do público. No escritório de seu apartamento na Capital, ela observa:
– A arte em geral está ligada a um desejo das pessoas por algo que seja verdadeiro em meio aos anúncios de néon e a toda ilusão que vivemos. Os reality shows bebem nisso. Tem algo de voyeurístico em nosso desejo de saber: é mesmo a tua vida no palco?
Olhando retrospectivamente, é fácil identificar o quanto ela colocou de si nesse trabalho. Entre os diferentes papéis que a atriz Marina Mendo interpretou na peça, estava o da filha de Natalício, que não tinha seu nome revelado, mas dizia, em primeira pessoa, mensagens de Patrícia para o pai. Uma delas era assim: “Que saudade imensa eu sinto, uma saudade sem fundo, sem nome, sem fim. Escrevi isso há mais de 10 anos: as pessoas mortas continuam vivendo no amor das pessoas vivas. Imagino tua vida, tento imaginar, recompor, seguir teu passos”.
A matéria-prima da peça foi a herança que Valter Fagundes deixou para a filha ao morrer em uma cirurgia do coração que, segundo os médicos, tinha 90% de chance de dar certo: não dinheiro, mas recortes de jornais com notícias dos rodeios, cartas recebidas de ouvintes dos programas no rádio e fotografias. Parte desse material era projetada em um telão no fundo do palco durante a ação, mas o nome real foi substituído digitalmente pelo nome do personagem, de forma que o público não suspeitasse de sua identidade real.
Desde criança, Patrícia sonhava em escrever um livro sobre o pai, que inspirava nela certo desejo épico por aventura. Houve também uma motivação dolorosa: quando soube da morte, em 2000, ela estava vivendo sua própria aventura em Londres, onde tinha ido morar no ano anterior para realizar um mestrado. Sentiu como se não tivesse feito o suficiente para salvá-lo.
– Foi uma experiência traumática. Alguns anos antes, ele já tinha estado doente, e fui eu quem havia encaminhado tudo. Quando teve o problema no coração, não fui eu quem cuidou, porque eu não estava aqui. O processo de culpa levou anos.
Mas o tempo reservou uma contrapartida: no momento em que revivia o luto ao estrear Natalício Cavalo, Patrícia estava grávida de Cármen, hoje com quatro anos e meio. Entendeu como se um ciclo estivesse se fechando:
– Não foi planejado que esses fatos fossem simultâneos, mas vejo uma beleza nisso. Foi no ano seguinte que olhei para trás e pensei: “Gente! Isso deve querer dizer algo”.
Escrever e encenar a peça foi transformador, mas Patrícia observa que o teatro é coletivo e que os artistas sempre mudam na relação com os outros na sala de ensaio. Além de Marina Mendo, integraram o elenco Heinz Limaverde, Lisandro Bellotto, Marcelo Mertins, Priscilla Colombi e Rossendo Rodrigues. Essa transformação, para Patrícia, não é uma figura de linguagem, mas um dado concreto. Fazer teatro, para ela, é uma aventura que envolve sempre o risco de naufrágio. Ela também sabe que sua experiência garante boa chance de que a embarcação encontre o destino com segurança.
A diretora faz questão de reforçar que Natalício Cavalo não é um espetáculo sobre o pai ou sobre ela, mas sim sobre a experiência da morte numa pessoa que ama a que morreu. A ideia de tornar a história universal é fundamental para ela.
– É a única coisa que importa – defende. – Costumo dizer para os alunos e para os atores que não é a história deles que importa. Ninguém está interessado nisso, nem os amigos. É preciso transformar nossa experiência para o outro. Com Natalício, muitos se emocionaram pensando em suas mortes.
Até hoje ela ensaia espetáculos da Cia. Rústica na fazenda da família materna, em Bagé, da qual o pai seguiu cuidando mesmo após a separação, ocorrida quando ela tinha 15 anos. Nascida na Capital, Patrícia passou inesquecíveis férias escolares com o pai no local, andando a cavalo, correndo pelo campo e tomando banho de açude.
O contraste entre a classe social e a formação educacional (até a 5ª série) de Valter em relação às boas condições dos familiares do lado materno marcou a encenadora, que cresceu experimentando esse “convívio entre contrários”, como define. Além da irmã Ana Paula, tem sete irmãos por parte de pai, seis dos quais conhece desde pequena.
Mas Natalício Cavalo deixou muitas lacunas por serem preenchidas pela ficção. Diversos atores se revezam no papel da Morte, que acompanha o protagonista em sua trajetória. A diretora tampouco sabe se é verdade que o avô paterno foi de fato assassinado, mas, para ela, não importa. Reconhece que a versão apresentada em cena é um recorte da memória temperado pelo afeto.
– Sei que o homem real é mais frágil, torto, falho, mas precisamos de imagens amorosas. É como contar a experiência da morte dele em mim, pois a morte se dá em quem vive. Não sabemos como é a experiência da morte em quem morre.
Patrícia jamais visitou o túmulo do pai em Bagé. Diz que sua mãe a considera “desnaturada” por isso. Então, a diretora mostra ao repórter os cintos que foram do pai pendurados na parede de seu apartamento, ao lado de um cartaz do espetáculo no qual se vê uma foto de Valter Fagundes a cavalo. Hoje não é mais segredo. Ao abrir a caixinha da herança, Patrícia finalmente publicou o livro sobre o pai que sonhava fazer quando criança.