Por Daniel Rodrigues
Jornalista e escritor, membro fundador da Associação de Críticos de Cinema do RS (Accirs)
Levar Shakespeare para a tela sempre foi uma tarefa complexa. A tentação de se valer do texto clássico pela sua inequívoca qualidade, no entanto, nem sempre é garantia de um bom resultado. Justamente pela alta qualidade literária, a adaptação pode facilmente resvalar. Se há acertos esplêndidos, como Othelo de Orson Welles, há também pasteurizações enfadonhas, tipo Romeu + Julieta de Baz Luhrmann. Fato é que o cinema ainda explora formas de elaborar a dramaturgia do autor inglês. Entende-se, contudo, tamanha tentação. O teatro shakespeariano sintetiza tão bem a alma humana que é capaz de refletir situações aparentemente distantes de si, rompendo épocas e renovando linguagens ao longo do tempo.
O provocativo Hamlet, do cineasta gaúcho Zeca Brito, que está em cartaz na Cinemateca Paulo Amorim, em Porto Alegre, prova isso. Quando se poderia imaginar, afinal, que uma peça de 425 anos suportaria com a devida potência a ação do movimento Ocupa Escola do Brasil do século 21?
Premiado em festivais como Gramado e o FIDBA, em Buenos Aires, Hamlet é livremente inspirado na peça trágica. Encarnado por Fredericco Restori, o jovem protagonista se encontra em pleno ano de 2016 vivenciado a ocupação do Instituto de Educação General Flores da Cunha, na capital gaúcha. Em meio ao traumático processo de impeachment de Dilma Rousseff, é o registro de um período de convulsão social, quando estudantes secundaristas amotinam-se e interrompem as aulas para protestar contra o desgastado sistema vigente.
Com a equipe de filmagem inserida no colégio, Brito capta ao mesmo tempo a realidade daqueles jovens e a participação ativa do ator, que divide-se entre a ficção e a vida real. O cineasta retoma o teor político de realizações anteriores, como A Vida Extraordinária de Tarso de Castro (2016) e Legalidade (2019), porém usando a tragédia renascentista como impulso a uma obra pulsante e singular.
A força do filme está no proveito de um dos recursos elementares do texto original: a dualidade. A dureza da fotografia em P&B expõe constantemente a dicotomia “realidade versus ficção”. O “ser ou não ser” hamletiano se transfigura em embates simbólicos entre bem e mal, loucura e lucidez, democracia e totalitarismo, violência e doçura, espírito e matéria. Ao unir documentário e drama, Hamlet joga seu protagonista num palco vivo, que o faz questionar a vida como um teatro de incertezas e angústias. A exposição na tela daquele Brasil rachado redimensiona, assim, o significado da palavra “cenário”. Não é mais só uma explicação para “conjuntura política”, mas para a cena, o plano de ação, o que a câmera enquadra.
É emblemática a cena em que Hamlet é abordado por uma equipe de TV que transmitia ao vivo o ato no colégio. A repórter (de abordagem parcial e sem saber que se tratava de um ator), questiona Hamlet sobre a ocupação. Porém, incomodada com uma pessoa que a filma just in time (o próprio Zeca Brito), grosseiramente o condena. A multiplicidade de camadas e espelhamentos que a sequência revela – o olhar do cineasta, do tevente, do espectador do filme, da repórter, do apresentador, do cinegrafista – atingem um nível de metalinguagem e de complexidade discursiva admiráveis.
A atuação de Restori, igualmente, é alimentada por essa riqueza. A tênue fronteira entre sanidade e insanidade que conduz Hamlet expõe-se no filme no conflito existencial entre outros dois extremos: o rompimento com a infância e a assunção da vida adulta. Mais do que isso: a tomada de consciência do seu “ser político”.
Os diálogos dele com o pai, o também ator Marcelo Restori, como que pondo-se ante um fantasma no espelho, retrazem o elemento da figura paterna do livro, mas não pelo trauma da morte física, como no caso do príncipe dinamarquês, e sim a morte da inocência em detrimento da razão.
Ao reelaborar elementos distintivos do clássico, o filme renova o olhar sobre o ser humano em suas relações sociopolíticas na atualidade. O jovem Hamlet, amálgama de incertezas e desafios, veste, agora, seu manto preto por Porto Alegre como um estudante em busca de respostas que lhe façam sentido. O filme, assim, suscita profundos questionamentos a respeito da sociedade brasileira dos últimos anos, uma sociedade contraditória marcada pela pior das dicotomias: a polarização política. No espelho, não é mais o fantasma do pai que Hamlet vê: é o seu país.
Hamlet
De Zeca Brito. Com Fredericco Restori, Jean-Claude Bernardet e Marcelo Restori. Em cartaz na Cinemateca Paulo Amorim, em Porto Alegre.