Mesmo passados cinco anos de seu lançamento, a comédia Como se Tornar o Pior Aluno da Escola (2017) virou alvo de polêmica. O Ministério da Justiça e Segurança Pública, por meio da Secretaria Nacional do Consumidor, determinou que o filme seja removido dos catálogos das plataformas de streaming no Brasil, por conta de uma cena em que o personagem de Fábio Porchat, o vilão pedófilo Cristiano, pede para ser masturbado por dois adolescentes, interpretados pelos atores Bruno Munhoz e Daniel Pimentel.
Em postagem nas redes sociais nesta terça-feira (15), o ministro Anderson Torres informou que o não cumprimento da determinação de retirar o título dos serviços digitais no país resultará em multa diária de R$ 50 mil. Produtor e estrela do filme, Danilo Gentili, para a Folha, disse que "a cena vilaniza as pessoas hipócritas que se escondem atrás de discursos moralistas", além de afirmar que "a censura nunca acaba. Apenas muda de agenda".
Nas redes sociais, a discussão se polarizou, com pessoas defendendo a determinação do ministério, enquanto outras defendem a obra, classificando a decisão de Torres como censura. Por conta disso, GZH ouviu advogados especialistas na área cultural para entender se, de fato, o filme foi vítima de um tolhimento à liberdade de expressão, se a posição do ministro foi ilegal ou se existe embasamento legal para a retirada da produção das plataformas.
Para Cristiane Olivieri, advogada especialista em arte, cultura e entretenimento, a discussão é sobre a classificação indicativa e não sobre remover ou não uma obra audiovisual. O que caberia ao Ministério da Justiça seria apenas a reclassificação do filme, aumentando a recomendação etária.
— O que aparece no filme é de mau gosto, mas não é crime em si. E mesmo que fosse, temos vários filmes que mostram uma pessoa matando a outra. Aquilo é filme, não é realidade. Então, você não pode tirar do ar um filme porque tem uma cena como essa — explica.
A advogada reforça que a classificação indicativa para o audiovisual é feita previamente pelo próprio Ministério da Justiça e no caso específico da produção de Gentili não foi cometida nenhuma ilegalidade, com o título sendo recomendado para maiores de 14 anos, de acordo com o Guia Prático de Classificação Indicativa:
— Ele fez todo o processo que tinha que fazer. E, no caso deste filme, por exemplo, a situação cômica de qualquer assunto é uma atenuante, porque é caricato, não é de verdade o que está acontecendo. Acho que eles deveriam ter feito uma reclassificação, se acham que 14 anos não está bom, e não a retirada do filme do ar, que me parece muito radical. Pode ser classificado como censura.
Já para o advogado especializado em leis de incentivo à cultura e assessor jurídico da VR Projetos Culturais e Sociais Transformadores, Renato Paixão, a decisão do Ministério da Justiça foi acertada, uma vez que, em sua visão, o filme afronta o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA).
— Existe um embasamento jurídico para este pedido do Ministério da Justiça, sem sombra de dúvidas. Não podemos negar o que aconteceu nessa cena e, por isso, existe um fundamento jurídico. Mesmo que aumentassem a faixa indicativa, esse ato é considerado um crime. Então, por ser um crime, não há o que se falar. O abuso infantil é algo muito sério e acontece em grande escala no Brasil. E não considero normal, mesmo que fosse para 18 anos — afirma o advogado.
Porém, de acordo com Cecilia Rabêlo, advogada mestre em Direito Constitucional e presidente do Instituto Brasileiro de Direitos Culturais, não cabe ao Ministério da Justiça tal determinação, que fere o princípio de liberdade de expressão. Além disso, para retirar um filme do ar, seria necessária uma ação judicial antes — e, mesmo assim, a decisão da remoção da obra, em sua visão, seria muito pouco provável.
— A liberdade de expressão artística é plena, desde que ela observe a legislação. Porque a gente tem limitações à liberdade de expressão artística, mas ela está prevista em lei. Por exemplo, vedação ao discurso de ódio, ao crime de racismo, à homofobia. As limitações à liberdade de expressão artística estão na lei, não em atos do Ministério da Justiça. Quem pode restringir é a lei ou uma decisão judicial. Lógico, com um processo judicial, garantindo todos os direitos de ampla defesa e tal. A regra é a liberdade — destaca Cecilia.
Cristiane concorda com a colega, destacando que o ministro Anderson Torres não tem o poder de decidir sobre conteúdo e, mesmo dentro de uma ação judicial, provavelmente, não iria conseguir barrar o filme de ser exibido.
— Sem ser censura, acho muito difícil tirar de circulação. Qual é o dano? Não é crime. É a cena de um filme — enfatiza.
Cecilia ainda aponta que o fato de condutas criminosas estarem sendo retratadas em uma obra artística não significa que elas são reais ou mesmo que a produção está apoiando aquela ação.
— Caso fosse, seria impossível você fazer filmes de assassinatos e coisas desse tipo. Não é possível analisar a obra fora do seu contexto — aponta, destacando que o único ponto que talvez pudesse ser objeto de discussão seria a presença de atores menores de idade em cena, mas que isso não é motivo para decisão não-judicial para a obra ser retirada de circulação.
Paixão, por sua vez, enfatiza que, em sua visão, nenhuma obra que faz apologia a crimes hediondos deveria ser exibida, principalmente porque a classificação indicativa não é respeitada pelos pais, que permitem que os filhos assistam aos filmes não indicados. Por isso que, no que se refere ao Como se Tornar o Pior Aluno da Escola, ele acredita que, mesmo que fosse para maiores, o longa ainda seria problemático, por apresentar abuso infantil.
— Acho que é uma medida legal e preventiva, porque esse é um crime que tem aumentado muito Brasil afora. Não é legal tocar neste tema. A questão de exibir crianças sendo abusadas dentro deste filme é o que prejudica — pontua o advogado.
— Aqui, a gente não está tratando se a pessoa gosta ou não gosta. Pode ser de mau gosto, isso não está no jogo. Tem muita coisa de mau gosto nessa vida. Vamos proibir todas elas? O respeito à liberdade de expressão é você tolerar o que você não suporta. Porque tolerar o que você gosta é muito fácil. Então, se não é crime, a gente tem que tolerar, tem que classificar para a idade correta, mas a gente não pode impedir a liberdade de expressão — complementa Cristiane.