Seja nos palcos, na TV ou no cinema, Matheus Nachtergaele é um dos atores mais prolíficos do país. Nesta quinta-feira (5), estreia nos cinemas Piedade, longa em que ele vive o inescrupuloso Aurélio. Com direção de Cláudio Assis, o filme conta com nomes como Cauã Reymond e Fernanda Montenegro no elenco.
Piedade é ambientado em uma fictícia cidade homônima de Pernambuco, similar a Recife. Uma lugar transformado pela petroleira PetroGreen, que abalou o ecossistema local e possibilitou o aumento da presença de tubarões nas praias locais. Em uma dessas praias, há o bar Paraíso do Mar, gerenciado por Carminha (Fernanda Montenegro) e seu filho Omar (Irandhir Santos).
Porém, a PetroGreen está de olho no terreno onde se localiza o estabelecimento. A empresa envia Aurélio para negociar com os moradores locais. A proposta encontra resistência, então ele passa a desestabilizar os donos do bar por meio de Sandro (Cauã Reymond), um familiar perdido.
Matheus também marcará presença no Festival de Cinema de Gramado, que terá início no próximo dia 13 de agosto. Ele interpreta o mecânico Zé Macaco — personagem bobo e, ao mesmo tempo, inteligente, que serve como um coadjuvante de luxo no longa Carro Rei, da diretora pernambucana Renata Pinheiro.
Na trama, um jovem chamado Uno (Luciano Pedro Jr.) tem o dom de se comunicar com carros. Quando uma nova lei proíbe a circulação de carros velhos em Caruaru (PE), colocando em risco a empresa de táxi do seu pai, ele recorre a seu melhor amigo de infância, um veículo sábio e ardiloso. Junto com seu tio, vivido por Matheus, ele arma um plano para burlar a lei em que restauram automóveis velhos.
De qualquer maneira, o ator destaca que ainda há quem sorria para ele na rua ao se lembrar de sua atuação como João Grilo, no cultuado O Auto da Compadecida (2000). O longa ganhou uma versão remasterizada no ano passado em comemoração aos seus 20 anos.
Em conversa com GZH, Matheus falou sobre seus projetos, personagens e sua relação com o Rio Grande do Sul. Confira:
Você marca presença em todos os cinco filmes de ficção de Cláudio Assis. Como é a relação de vocês?
Existe um "apaixonamento" artístico e de alma entre nós. Somos amigos desde antes das filmagens do Amarelo Manga. Quando conheci o Claudião, ele se aproximou de mim para me convidar para o filme. Nessa mesma noite, batemos um papo e formamos essa amizade. Tomamos um porrão juntos! Entendi que artista ele era. Qual era a dimensão daquele cineasta. Eu nem tinha certeza se iria ter filme ou não. Ele estava tentando captar recursos para o Amarelo Manga, mas eu já queria ser amigo daquele cara tão ao mesmo tempo bom como homem e humanista, tão ao mesmo tempo raivoso pelo estado das coisas.
Que vai do oito ao 80?
Um homem profundamente bom, com objetivos sempre muito bonitos em cada gesto que faz e que realiza. Ao mesmo tempo, um homem furioso com a vida como ela é: desigual, imperfeita, com seres humanos tão bestiais. Foi uma amizade que se fez rapidamente. Cláudio entendeu também de mim alguma coisa que não sei o que é, mas que faz com que ele me chame a cada projeto. É sempre uma oportunidade gigantesca para eu me rever como ator. Para fazer um catarse pessoal com algum tema que me incomoda, uma vez que cada filme nasce das nossas longas discussões sobre a vida, política, amor, doença, morte, capitalismo, afetos e sexualidade. O cinema do Cláudio sempre nasce do encontro repetido dele com grandes parceiros. Eu amo Cláudio Assis.
Qual a diferença de Piedade para os outros filmes do Cláudio? Que inquietações ele traz desta vez?
Piedade é o longa mais falado do Cláudio. Pela primeira vez, tínhamos páginas e páginas de diálogo. Um filme que se propunha mais imagético e menos dito. Um fundo de trama melodramático, a mãe que perde e busca seu filho, e que traz também uma denúncia ecológica. Definitivamente, é um filme sobre a invasão do ultracapitalismo à praia dos nossos afetos. Também é um filme que encontra o Cláudio mais cansado em repetir as mesmas coisas. Portanto, é um filme de insistência e cansaço. É um filme importante, de presságio. Acho que encerra uma série de temas que ele quis abordar na vida, das múltiplas violências que a gente causa à terra e uns aos outros.
Que tipo de temas?
Lembro que eu gostava de pensar que Amarelo Manga é sobre as pequenas violências de quem está tentando amar. Baixio das Bestas era sobre o machismo, a violência do homem contra a mulher e a terra. Febre do Rato, sobre a perseguição contínua à liberdade de expressão: o poeta tem que ser morto. No Big Jato, um jovem poeta tendo que largar um mundo machista para conseguir ser poeta. Aqui em Piedade, a pior das violências: contra a mãe. E também a mãe terra. A atriz violentada não é nada menos que a maior atriz brasileira.
É um filme de presságio. Nunca imaginávamos que chegaríamos ao bolsonarismo. Meu personagem é um protobolsonarista.
MATHEUS NACHTERGAELE
Ator
A pauta ecológica e social é bastante marcante em Piedade. Rodado em 2017, de que maneira dialoga com o Brasil atual?
É um filme de presságio. Nunca imaginávamos que chegaríamos ao bolsonarismo. Meu personagem é um protobolsonarista. Diante da mãe e da família, ele é um moralista. No mundo real, é incapaz de afetos, vive numa pornografia afetiva. Também um ultracapitalista, que faz tudo por dinheiro. Construímos um personagem que ganhou as eleições (de 2018). Esse personagem é o brasileiro de agora. O filme fala muito do presente. As coisas não mudaram muito desde que cometemos esse voto suicida e desde que chegou a peste (pandemia). Parece tudo uma grande noite, onde somos obrigados a viver enclausurados e que se passa uma grande boiada destruindo a natureza, além do renascimento de ideias mortas. Acho que é um bom filme para quem está se sentindo (incomodado) com os rumos que o Brasil está tomando agora.
Como foi a sua construção do Aurélio?
Aurélio é o tipo do qual eu escapei de ser. Nasci em uma família branca, burguesa, com muitas pessoas de pensamento retrógado, que tentam se agarrar com todas as forças aos preconceitos. Tudo que eu sou é uma fuga do Aurélio. No filme, voltei para aquilo que eu não quis ser. Essa foi a minha construção. Aurélio é o que os caretas da minha família queriam que eu fosse. Um cara que pensa na grana, se apresenta arrumado, um gay de armário. Eu e meus irmãos rompemos esse ciclo. Fiz uma pesquisa para dentro. Foi doloroso. Não foi fácil. Existia uma dúvida sobre meu tipo físico e o arquétipo do personagem. Raspei a cabeça, usei ternos cortados no meu corpo, para dar a ele a elegância e a periculosidade necessária. Foi um esforço. Piedade foi mais cansativo do que fazer o Big Jato, por exemplo, onde eu interpretava dois personagens com características diferentes. Ambos eram mais fáceis de acessar para mim.
Aurélio é o tipo do qual eu escapei de ser. Nasci em uma família branca, burguesa, com muitas pessoas de pensamento retrógado, que tentam se agarrar com todas as forças aos preconceitos.
MATHEUS NACHTERGAELE
Ator
Aurélio te trouxe um cansaço emocional?
Ele é como muita gente que conheci, que amo e, ao mesmo tempo, desprezo.
Aurélio me remete ao tubarão mencionado no filme. Seu personagem também é um predador. Ele é determinado em arrasar a concorrência, mesmo que aniquile uma harmonia familiar.
Ele é o tubarão do filme. E o tubarão só está ali por causa do desastre ambiental. Essa á grande questão em Pernambuco. Os tubarões só atacam as pessoas porque destruíram os hábitats deles.
Que tipo de vilão Aurélio é?
Não é um vilão construído só com as tintas do vilão. Ele tem suas amarguras e também é vítima. Afinal, ele não é o capital, é apenas um enviado. Um funcionário da indústria petrolífera. Acha que está se dando bem, mas não, está destruindo o próprio meio ambiente dele. Além da própria saúde emocional.
Em Piedade, você e Cauã Reymond protagonizam sequências de sexo. Como foram as filmagens dessas cenas?
Foi gostoso e tranquilo. De todas as cenas do Aurélio, achava as mais fáceis. Claro, havia a exposição de nudez, de uma intimidade do corpo exposta diante de uma equipe. Mas a gente é muito amigo. Foram sequências feitas rapidamente. Sabíamos o que íamos filmar, nos conhecemos, não temos pudor. Fiz muitas cenas de sexo na vida. Já fiquei muito nu em cena. No próprio O Livro de Jó (espetáculo do grupo Teatro da Vertigem), eu era a nudez. Meu Jó era um homem nu e ensanguentado. Não tenho constrangimento.
Outro filme de que você participa, Carro Rei, será exibido no Festival de Cinema de Gramado. O que te chamou a atenção para esse projeto?
Conheci a diretora, Renata Pinheiro, nos sets de filmagem. Ela foi diretora de arte dos três primeiros longas do Cláudio Assis. Também trabalhou comigo no meu longa, A Festa da Menina Morta. Renata começou a dirigir curtas e médias e agora está se tornando uma diretora de muito brilho. Foi muito bonito reencontrar com ela, já como uma grande cineasta.
Tenho uma relação forte com o Estado (Rio Grande do Sul). Já filmei muito na região. Minha melhor amiga é de Pelotas, conheço a cidade como a palma da minha mão. Também já vivi alguns grandes amores aí no Sul.
MATHEUS NACHTERGAELE
Ator
É um filme interessantíssimo. É uma ficção científica agrestina. Tem um fundo doce e ecológico, ao mesmo tempo em que consegue ser antifascista. Uma ficção científica com os recursos que o Brasil tem para seu cinema sempre de baixo orçamento. Estou apaixonado por Carro Rei.
Zé Macaco, seu personagem, é um giro de 180 graus comparado com o seu papel de Piedade. Ele parece ser bobo, mas é bastante inteligente.
E quando ganha o poder, ele vira fascista. Também é um filme de presságio, estávamos sentindo o que viria pela frente. O personagem chama-se Zé Macaco porque ele usava um macaco para trocar os pneus. Propus à Renata que ele próprio se parecesse com um macaco, que sofria bullying, mas também inteligente. Ao contrário do Aurélio, que foi essa viagem dolorosa para a minha origem, fiz a lição de casa na construção desse personagem: li livros de antropologia que nos compara aos macacos. Assisti seguidas vezes A Guerra do Fogo e fiz aulas de mecânica em Caruaru (onde o filme é rodado). Desmontei e montei motor, coisa que nunca tinha feito na vida. Ao mesmo tempo, desenvolvia o macaco em mim, no meu corpo, e aprendia a mecânica das coisas. Eu não sabia como um carro funcionava a partir do momento em que giro a chave na ignição. Agora sei.
Como é sua relação com o Festival de Gramado? Neste ano o festival vai ser a distância novamente.
Fiquei com pena disso, pois Carro Rei é um filme de telão. É deslumbrante em sua beleza e arte. Quando for para o telão, vai ser um gozo. Tenho uma relação de amor profundo pelo festival. Já estive algumas vezes. Meu filme estreou em Gramado no Brasil. Todas as emoções do mundo juntas ali. Foi muito lindo.
Tenho uma relação forte com o Estado. Já filmei muito na região. Minha melhor amiga é de Pelotas, conheço a cidade como a palma da minha mão. Também já vivi alguns grandes amores aí no Sul. Tenho também essa relação com a Casa de Cinema (produtora situada em Porto Alegre). Toda hora estou indo para aí.
Como tem sido o período pandêmico para você? Muitos trabalhos ficaram represados?
Sim. Alguns estrearam na pandemia ou estão estreando ainda, como Piedade e Carro Rei. Tenho ainda filme inédito na lata, filmado antes da pandemia, como Clube dos Anjos, de Angelo Defanti. Como ator, estou paralisado, mas não como artista pensante. Não posso me queixar, pois deixei muita coisa gravada. Também houve coisas interrompidas, como o espetáculo Molière. Estávamos saindo para turnê quando a pandemia aconteceu. Cine Holliúdy teve a segunda temporada adiada, só gravamos um terço. Vivo com a estreia dessas coisas que deixei feitas.
Eu nunca tirei férias desde que comecei a trabalhar. Tenho essa sorte. Só parei na vida por exaustão.
MATHEUS NACHTERGAELE
Ator
E longe dos palcos...
Fiz algumas lives de teatro. Obviamente, estou morrendo de saudades do palco, do presencial. Ofício de ator é analógico por natureza. Não existe home office para ator! Não tem como! Aproveitei esse tempo para ler bastante, curtir a minha casa e o meu jardim.
Você não tirava férias?
Eu nunca tirei férias desde que comecei a trabalhar. Tenho essa sorte. Só parei na vida por exaustão. Cheguei a um momento em que estava demais. Tive que pausar para respirar.
Já tem algo previsto para quando a situação melhorar?
A primeira coisa que farei de concreto é a série do Globoplay O Jogo que Mudou a História, dirigida por José Junior e Heitor Dhalia. Aborda a guerra do tráfico e a formação das milícias no Rio de Janeiro, nos anos 1970. Vou fazer dois personagens: um miliciano e um líder de comunidade. É grande o projeto, muito épico. Começaremos a gravar em janeiro.
Auto da Compadecida vive sendo lembrado com muito carinho pelos brasileiros nas redes sociais. É cultuadíssimo. Na sua opinião, por que essa versão audiovisual de O Auto da Compadecida segue ressoando? O que torna esse filme tão especial?
O Auto permanece vivaz no coração de todos os brasileiros há mais de 20 anos. Também me impressiono. É extremamente religioso e político. É um filme sobre a desigualdade social e sobre a religiosidade do povo brasileiro. João Grilo (personagem de Matheus) e Chicó (Selton Mello) representam a maior parte do povo brasileiro. Há um conteúdo religioso muito forte, uma fé na vida representada pelo amor à Nossa Senhora. A direção do Guel Arraes é muito ágil e inteligente. E o texto do Ariano Suassuna (autor da peça teatral que inspirou o filme) é uma base de arquétipos, uma obra-prima da dramaturgia mundial. Foi a reunião elenco muito maravilhoso, altamente empenhado em fazer aquilo. Era um projeto muito bastardinho na época.
Bastardinho?
É, não se sabia se ia dar certo. Não se investiu muito dinheiro na época. Lutamos muito para fazer bonito.
E o sucesso do filme surpreendeu vocês?
Surpreendeu demais! A cada reexibição também. Agora que foi relançado com novas tecnologias, bombou igual à estreia. É incrível! É um negócio maluco. A minha vida e a do Selton mudou. Nós já fazíamos televisão e teatro, mas depois de O Auto da Compadecida fomos jogado para dentro do coração das pessoas de forma definitiva. Acho que todo mundo que olha para mim e sorri, olha e sorri um pouco para o João Grilo. Isso é muito emocionante.