Em novembro de 1981, sentado no banco de réus do Tribunal Superior do Estado de Connecticut, nos Estados Unidos, era um acusado peculiar quem aguardava pela declaração da sentença do júri: o demônio. A cena, apesar de figurativa, ilustra bem o imaginário acerca do caso que inspira a trama de Invocação do Mal 3: A Ordem do Demônio, filme que chega nesta quinta-feira (3) aos cinemas brasileiros.
Terceiro filme da franquia principal que revisita os arquivos do famoso casal de demoniologistas Ed e Lorraine Warren (interpretados por Patrick Wilson e Vera Farmiga), o longa é baseado no assassinato por esfaqueamento do tratador de cães Alan Bono em fevereiro de 1981, na cidade americana de Brookfield, que havia décadas não presenciava um homicídio. O crime foi cometido por Arne Cheyenne Jhonson (interpretado por Ruairi O'Connor), jovem de 19 anos que se tornou o primeiro réu norte-americano a se defender de uma acusação alegando estar possuído pelo demônio.
As histórias das supostas possessões por trás do crime tomaram grandes proporções nos Estados Unidos da década de 1980. Com o país mergulhado no período que ficou conhecido como satanic panic, o interesse e o temor coletivo da população por fenômenos sobrenaturais levaram o caso a estampar os principais jornais norte-americanos e, já poucos anos depois, a ser explorado pela indústria do entretenimento.
Após inspirar séries documentais e o livro The Devil in Connecticut (O Demônio em Connecticut, em tradução livre), de Gerald Brittle com colaboração de Lorraine Warren, o caso ganha as telas mundiais em Invocação do Mal 3. Abaixo, conheça os detalhes da história:
O crime
Em 16 de fevereiro de 1981, Arne Cheyenne Johnson, sua namorada Deborah "Debbie" Glatzel e o chefe dela, Alan Bono, almoçavam e bebiam em uma residência da pacata Brooksfield, em Connecticut. Junto ao trio estavam as pequenas Wanda e Mary, irmã e prima de Johnson.
Tudo parecia correr bem após a refeição, mas uma discussão entre Bono e Jhonson mudou os rumos do encontro. Segundo os relatos do caso, ambos estariam alcoolizados e teriam brigado após Bono se recusar a atender um pedido de Debbie para deixar o cômodo em que estava. Ele acabou sendo detido pela lâmina dobrável de cinco polegadas da faca de bolso que Johnson usou para lhe esfaquear repetidas vezes. (Spoiler: no filme, que não é 100% fiel ao caso real, a discussão não aparece).
Horas depois, Johnson foi encontrado pela polícia a cerca de três quilômetros do local do crime. Ensanguentado, ele foi encaminhado a uma delegacia pelas autoridades locais.
O que até então parecia apenas um caso de assassinato - ainda que, em Brooksfield, isso não acontecesse com frequência - começou a ganhar ares macabros quando Johnson alegou não se lembrar do ato que havia cometido. Quando, então, os já conhecidos Ed e Lorraine Warren procuraram a polícia para afirmar que o crime era fruto de uma possessão diabólica, todos os holofotes se voltaram para a pacata cidade de Connecticut onde, pela primeira vez, o sobrenatural parecia estar prestes a encarar a "Justiça dos homens".
Mas, afinal, o que os Warren tinham a ver com isso?
As possessões
Não foi por acaso que Ed e Lorraine Warren defenderam que Arne Johnson teria agido sob a ordem de um demônio ao esfaquear Alan Bono. Os investigadores de atividades paranormais, à época já bastante conhecidos por trabalharem em casos como o da boneca Annabelle e os eventos macabros de Amityville, conheciam Johnson e sua namorada Debbie. Conforme alegaram às autoridades, os dois tinham razões suficientes para acreditar que se tratava de mais um episódio de possessão entre os que cercavam a vida do jovem casal.
Um ano antes do crime, em 1980, Ed e Lorraine foram chamados para ajudar a família de Debbie, namorada de Johnson, na investigação dos comportamentos estranhos apresentados pelo irmão de 11 anos dela, David Glatzel. Segundo relatos de Judy Glatzel, mãe dos irmãos e sogra de Johnson, publicados em uma reportagem do The New York Times em março de 1981, seu filho David "chutava, mordia, cuspia e xingava palavras terríveis", além de parecer estar sendo asfixiado por uma mão invisível.
Os comportamentos, conforme a família relatou às autoridades e à imprensa na época, teriam começado quando o garoto acompanhou Debbie e sua mãe em uma visita à casa em que a irmã iria morar com Johnson, ainda desocupada. Na ocasião, David teria caído repentinamente no chão. Ao anoitecer, o garoto teria revelado à mãe que foi empurrado por um idoso que ameaçou perturbar a família, caso insistissem em habitar a residência. David foi o único a vê-lo.
Após o "encontro", ainda conforme relato da mãe, ele começou a acordar aos berros durante a noite, com hematomas e arranhões, descrevendo um ser de olhos negros, chifres e cascos. De acordo com Judy, o filho não tinha costume de assistir nada que pudesse inspirar a descrição de tal figura. Pouco tempo depois, o menino relatava ver a criatura também durante o dia, quando a família decidiu pedir ajuda da Igreja Católica local.
Conforme contou Lorraine Warren ao The New York Times, foi a Igreja que a acionou, junto ao esposo Ed, para auxiliar no exorcismo do garoto. Ao jornal, o porta-voz da diocese à época, Nicholas Grieco, negou o envolvimento no caso e a realização de qualquer ritual: "Nenhum exorcismo formal foi pedido ou realizado".
Mas, segundo os Warren, o exorcismo não apenas foi feito, como foram identificados 43 demônios agindo sob o David Glatzel.
E foi durante as sessões que Arne Johnson, que junto à família da namorada também ajudava nos rituais de libertação de David, cometeu um erro tido pelos Warren como fatal. Mais de uma vez, ele teria desafiado os demônios que possuíam o corpo do jovem cunhado, propondo trocar de lugar com ele. "Na verdade, ele dizia: 'Entre em mim, deixe o garotinho em paz'", contou Lorraine Warren ao The New York Times.
Pouco tempo depois, Johnson começou a ter alucinações em transe e lapsos de memória, o que levou os investigadores paranormais a crerem que seu desafio havia sido aceito - e ele estaria de fato possuído por demônios. Os Warren chegaram a alertar a polícia de Brooksfield do que havia acontecido, pois suspeitavam que algum ato violento poderia ocorrer a partir da suposta possessão de Johnson.
Quando ele proferiu inúmeras facadas contra Alan Bono e depois afirmou não se lembrar de nada, o casal de demoniologistas foi taxativo ao defender que o crime havia sido cometido pelo demônio que dominava seu corpo.
"O julgamento do diabo"
"Os tribunais lidaram com a existência de Deus. Agora, eles vão ter que lidar com a existência do Diabo", disse Martin Minelli, advogado de defesa de Johnson, ao júri reunido no Tribunal Superior de Connecticut, segundo os registros da imprensa na época.
Com a tese de possessão diabólica levantada pelos Warren já espalhada pela mídia, e vista como aceitável por parte da população norte-americana mergulhada no satanic panic, Minelli não estremeceu ao apoiar toda sua defesa no argumento de que um demônio havia obrigado seu cliente a fazer o que fez. A estratégia do advogado foi a de reunir testemunhas que relatassem os eventos que cercavam a família Gatzel quanto à suposta possessão de David e ao desafio lançado por Johnson aos demônios, incluindo os padres que teriam auxiliado nos exorcismos e Ed e Lorraine Warren.
O plano, porém, não deu certo. Além de a Igreja não colaborar com a tese da defesa, negando sua participação no caso, os Warren não configuravam o que o júri da época considerava como testemunhas confiáveis. O argumento acabou virando uma grande piada. "Pelo assassinato de um homem chamado Alan Bono, o primeiro assassinato que esta pacata cidade conheceu em décadas, o tribunal e o público estão sendo solicitados a deixar o diabo assumir a culpa. O réu, conta a história, estava possuído por demônios", ironizou uma reportagem do The New York Times.
O juiz Robert Callahan, presidente do júri, não acreditou nas justificativas, alegando que jamais poderiam ser comprovadas. Decidido, também não levou a sério quando Debbie Gatzel afirmou que David contou a ela ter tido uma visão em que o diabo que lhe atormentava entrava no corpo de Johnson. "Foi a besta que cometeu o crime", bradou Debbie, sem sucesso.
Após um julgamento de mais de 15 horas, dividido em três dias, o demônio saiu ileso. Johnson foi condenado culpado e recebeu uma sentença de 10 a 20 anos de prisão. Após cinco anos recluso, ele foi liberado por bom comportamento.