Das ruas de Porto Alegre para as telas dos Estados Unidos, da Alemanha e de Cuba. Esta é a bem-sucedida trajetória de um documentário que busca dar visibilidade não só à história de um jornal independente, mas também a pessoas frequentemente invisibilizadas no convívio na cidade e nas políticas públicas.
O longa-metragem De Olhos Abertos estreia nesta terça-feira (15) em plataforma digital apresentando os bastidores do Boca de Rua, publicação idealizada pela ONG Agência Livre para Informação, Cidadania e Educação (Alice) e tocada pelas mãos de quem vive em situação de rua. Realizado pela própria ONG, o documentário tem direção de Charlotte Dafol, francesa nascida em Paris que vive no Brasil desde 2013 e integra a Alice.
Apesar de existirem outros projetos audiovisuais que contam a história do Boca de Rua, Charlotte explica que havia a necessidade de fazer uma obra com o olhar de quem colabora e convive com as pessoas do jornal, ideia que surgiu em meados de 2014. Diante da falta de recursos, as gravações ocorreram somente em janeiro de 2019. Uma vaquinha posterior, reforçada com recursos da Alice, somou R$ 20 mil e ajudou a levar o projeto adiante. Por economia e também opção autoral, Charlotte decidiu conduzir a maior parte do trabalho sozinha, contando por vezes com voluntários. A experiência, conta a diretora, mostrou-se transformadora: ao longo da narrativa, são reveladas histórias de preconceito e abuso, mas também de companheirismo e esperança.
— Muitas vezes eu saía para filmar e, ao voltar, à noite, não queria ver ninguém, ficava no quarto. Porque tem histórias bem fortes. E a própria confiança que eles tinham, de contar suas histórias e se abrir, sabendo que eu não ia fazer qualquer coisa com essas imagens. Foi um processo de muita aprendizagem e emocionalmente muito impactante — diz Charlotte.
Festivais
De Olhos Abertos ficou pronto em março, pouco antes de os cinemas ao redor do mundo fecharem as portas por conta da pandemia. Durante seis meses, a produção não teve qualquer retorno dos processos de seleção em festivais, que foram adiados ou cancelados. De repente, destaca Charlotte, esses eventos voltaram a ocorrer, e o documentário começou a ter respostas positivas. Participou do Inffinito Brazilian Film Festival (Miami e Nova York), no qual ganhou o prêmio de melhor filme na mostra competitiva de documentário, do Refugees Festival (Berlim) e do Festival de Cine Latinoamericano de La Habana (Havana).
Charlotte avalia que, embora o Boca de Rua não deva circular no circuito comercial no Exterior, o trabalho aponta que iniciativas com essa proposta são possíveis. No Brasil, embora se diga com pouca esperança de que o longa chame a atenção do poder público, ela avalia que possa, quem sabe, ajudar a pressionar por propostas e soluções para uma cidade e uma sociedade melhores.
O jornal foi concebido em 2000, um ano após a criação da Alice. O primeiro grupo que trabalhou no Boca de Rua foi formado por sobreviventes de um círculo de meninos e meninas que viviam nas ruas desde crianças. Ao conversar com eles, a jornalista Rosina Duarte, uma das fundadoras da Alice e da publicação, encontrou a primeira notícia do futuro jornal.
"Na minha opinião, (o Boca de Rua) é a maior ferramenta de transformação social que conheci na minha vida. Nem a Universidade Federal do Rio Grande do Sul é tão transformadora quanto esse jornal. Com o que os grupos vulneráveis estão acostumados? Quando você pede alguma coisa, você está em uma relação de poder e a tendência é aceitar, dizer 'sim, senhor'. Então, a autonomia, o protagonismo, a crítica, a autocrítica e o questionar e o querer saber o porquê, o próprio jornal conseguiu reunir todas essas coisas" resume o estudante e colaborador Anderson Ferreira em um dos trechos do filme.
Para assistir ao documentário, é necessário comprar ingresso no site deolhosabertos.com, por valores que variam entre R$ 10 e R$ 70 (com opção de se tornar padrinho ou apoiador do projeto). Além da estreia nesta terça-feira, serão disponibilizadas mais duas sessões: amanhã e no sábado, sempre às 19h. Por enquanto, esta é a única maneira de ver o filme. Charlotte, contudo, adianta que, em 2021, avaliará a possibilidade de colocar De Olhos Abertos no cinema ou no streaming.