O apelo pop da série fez com que obituaristas associassem Max von Sydow (1929-2020), acima de quaisquer outros papéis, ao Corvo de Três Olhos de Game of Thrones. O grande ator sueco morto no último dia 8 também é comumente lembrado pelo papel do Padre Merrin de O Exorcista (1973), o clássico da Nova Hollywood assinado por William Friedkin.
Von Sydow dublou Os Simpsons, foi dirigido por Martin Scorsese (em Ilha do Medo, de 2010), Dario Argento (Insônia, 2001), David Lynch (Duna, 1984) e Woody Allen (Hannah e Suas Irmãs, 1986), interpretou Jesus Cristo (A Maior História de Todos os Tempos, 1955), teve duas indicações ao Oscar (por Tão Forte e Tão Perto, em 2012, e Pelle, o Conquistador, em 1989), mas a verdade é que fez história, de fato, nos filmes de Ingmar Bergman.
Não há outro rosto masculino tão associado às obras-primas de Bergman quanto o seu.
O ator estreou com uma pequena participação no drama romântico sueco Tortura do Desejo (1944), dirigido por Alf Sjöberg e roteirizado por Bergman, àquela altura um jovem de 25 anos que ainda não havia se lançado diretor (Von Sydow tinha apenas 14). Esse filme, premiado no Festival de Cannes, impulsionou a carreira de ambos, o cineasta com uma série de longas-metragens lançados anualmente a partir de então (destaque para Mônica e o Desejo, de 1953) e o ator com uma série de personagens secundários (destaque para a adaptação de Senhorita Julia, de Strindberg, dirigida por Sjöberg em 1951) até que se reencontrassem em nada menos do que O Sétimo Selo, em 1957.
Von Sydow tinha 28 anos quando protagonizou um dos maiores filmes já feitos, eternizando, na figura de um cavaleiro medieval, a angústia do homem que procura sentido para a vida na fé, mas só encontra a miséria humana em um mundo devastado pela intolerância religiosa (O Sétimo Selo se passa à época das Cruzadas e da Inquisição). “Deus está acima de nós, bem longe. O diabo, aqui, em toda a parte”, diz em sua caminhada o personagem, sintetizando a busca do próprio Bergman, que fez de sua dificuldade de se encontrar com Deus combustível para mover uma locomotiva de criatividade que resultou em mais de 50 longas realizados em quatro décadas, 10 dos quais com Von Sydow.
A morte perseguia Antonius, o protagonista de O Sétimo Selo, escondendo-se sorrateira por onde o cavaleiro andasse e desafiando-o em uma icônica partida de xadrez, mas, para o ator, a vida artística deu um salto a partir dali – pelos filmes rodados em Hollywood e, paralelamente, pelo aprofundamento da parceria com Bergman, que seguiu, entre outros, com as produções suecas O Rosto (1958) e A Fonte da Donzela (1960).
Natural de Lund, na região metropolitana de Malmö, cidade vizinha à Copenhagen (Dinamarca), Von Sydow estudou na Royal Dramatic Theatre’s Acting School, que forneceu diversos intérpretes ao maior dos cineastas da Suécia (Lars Ekborg, Margaretha Krook e Ingrid Thulin foram seus colegas). Seus traços marcantes e a profundidade do olhar eram capazes de dar forma a uma grande complexidade de inquietações e sentimentos, sempre expressados com uma delicadeza ímpar, mas foi encarnando os atormentados protagonistas de dramas como A Hora do Lobo (1967), Vergonha (1968) e A Paixão de Anna (1969) que Bergman tirou o melhor do ator.
Nesses filmes, Von Sydow deu corpo a personagens conscientes de suas perturbações, o que de algum modo os aproximava do espectador – como se eles, de dentro do filme, conseguissem se ver do mesmo modo que nós, aqui fora, os víamos. Bergman era o “cineasta da alma” porque tinha essa capacidade de fazer de um filme o espelho das nossas angústias mais profundas, mas só chegava lá graças à força expressiva das figuras que as materializavam. E Von Sydow, entre essas figuras masculinas, foi a maior.
Como a comprovar que o cinema é a mais coletiva das artes, também é importante ressaltar o papel, por exemplo, da câmera do fotógrafo Sven Nykvist. Em A Paixão de Anna, o desatino progressivo do personagem do ator é capturado em sequências-chave apresentadas em planos fechados, para ao final, na última imagem, culminar em uma espécie de dissolução do homem – apresentada a partir de um zoom que vai se aproximando até que a figura dele se dissolvia, confundindo-se com os próprios grãos da película.
Foi um raro caso de excelência absoluta do roteiro, da encenação, da construção da imagem e da atuação, tudo em um mesmo conjunto harmônico. Com Bergman, Nykvist e Von Sydow, o cinema encontrou um dos melhores momentos de sua gloriosa história.