Em 2 de agosto de 2008, José Mojica Marins, o Zé do Caixão, esteve em Porto Alegre para a sessão de estreia de seu mais caro e melhor produzido filme até então, Encarnação do Demônio. Para marcar a exibição, realizada como parte da programação da 4ª edição do Fantaspoa, Zero Hora publicou naquele mesmo dia um comentário do filme e uma entrevista com o diretor. Devido à morte do realizador, nesta quarta-feira (19), republicamos aqui este material com algumas atualizações.
Demorou, mas Zé do Caixão está de volta. Para viver seus dias de fausto: com orçamento e aparato técnico de superprodução para seus padrões, o mestre do terror brasileiro José Mojica Marins dribla uma maldição de 40 anos e completa a trilogia de seu célebre personagem.
Encarnação do Demônio, que encerra a trilogia que apresentou ao mundo o coveiro conhecido lá fora como Coffin Joe, foi concebido em 1966 – dois anos após a conclusão de À Meia Noite Levarei sua Alma e um antes do lançamento de Esta Noite Encarnarei no Teu Cadáver. Enfrentou a censura pesada da ditadura militar e a morte trágica de três produtores entre os anos 70 e 90. Só pôde sair do papel, ressalta o próprio Mojica, graças aos esforços dos cineastas Dennison Ramalho e Paulo Sacramento, jovens representantes de um clube de fãs que ao longo dessas quatro décadas deixou o gueto do gênero de terror e só fez crescer o culto ao personagem.
– Foi o gaúcho Dennison (autor de curtas como Nocturnu, de 1998, e Amor Só de Mãe, de 2003, que em 2019 estreou seu primeiro longa-metragem, Morto Não Fala) quem me ligou propondo retomar o projeto. Era 2000, mais ou menos. Eu já estava de saco cheio de tudo dar errado. Mas não podia ficar pior – diz o diretor, de 72 anos.
Juntos, Mojica e Ramalho reescreveram o roteiro. Sacramento, que é ótimo montador e assinou a direção do igualmente muito bom documentário de longa-metragem O Prisioneiro da Grade de Ferro (2004), foi atrás de patrocínio. Embora tenha se passado quase uma década até Encarnação do Demônio ser finalizado, pode-se dizer que a recompensa veio rapidamente: no primeiro festival em que foi exibido, o de Paulínia, o filme levou os principais prêmios em disputa. E foi selecionado para uma mostra não-competitiva do próximo Festival de Veneza, um dos três principais eventos do gênero no mundo.
– Ainda estou estupefato com a notícia – diz Mojica. – Jamais pensei que levaria o Zé do Caixão a Veneza.
Na trama, Zé é libertado após 30 anos de cadeia e outros 10 de reclusão num hospital psiquiátrico. Está disposto não só a levar o terror a São Paulo, mas também a encontrar a mulher com quem possa gerar um filho "perfeito". Em seu caminho estão pesadelos pelos crimes cometidos no passado, o que inclui diversos personagens buscando acertar as contas com ele. Na entrevista a seguir, Mojica comenta sobre o filme e a maldição que o cercou – e também critica o que chama de "panela" que comanda o cinema brasileiro hoje.
Os prêmios em Paulínia e a exibição no Festival de Veneza representam um momento único para os filmes brasileiros de terror, não?
Realmente. O Paulo (Sacramento) teve de me dar a notícia da seleção para Veneza devagar. Vai que o velho aqui não resiste à emoção... Isso ultrapassa todas as fantasias que já tive. Estou nas nuvens. E isso de fato abre um caminho, dá uma visibilidade que os filmes de terror não têm. O que é importante à medida que, em primeiro lugar, há muita gente querendo investir no gênero mas ainda enfrenta um grande preconceito. E, em segundo, à medida que o Brasil é um prato cheio para o terror: tem muitas lendas, misticismos e superstições para serem explorados.
Sofri uma perseguição incrível da ditadura militar. Nos anos 60, os milicos me ameaçaram tanto que todos os produtores dispostos a fazer o filme se afastaram. Acabei rodando "O Ritual dos Sádicos", mas foi pior. Diziam que, por trás do terror, havia uma mensagem política. Só não sei que mensagem era essa.
Por que Encarnação do Demônio demorou tanto tempo?
Sofri uma perseguição incrível da ditadura militar. Nos anos 60, os milicos me ameaçaram tanto que todos os produtores dispostos a fazer o filme se afastaram. Acabei rodando O Ritual dos Sádicos (1970), mas foi pior: prenderam a fita e quase acabaram com minha vida. Diziam que, por trás do terror, havia uma mensagem política. Só não sei que mensagem era essa. Depois foi aquela maldição incrível: três produtores que estavam dispostos a fazer o filme morreram.
É verdade que, depois de tanto tempo, o senhor desistiu de atuar e nomeou um sucessor?
Sim. Em 1999, selecionei um ator entre 10 mil candidatos, o Rubens de Mello. Aí fizemos uma turnê para apresentá-lo, mas o povo não o aceitou. Quase o linchou. Aí ele mesmo desistiu, de tanto medo que teve. Não adianta, não há substituto para Zé do Caixão – como não houve para Chaplin, para Chacrinha, como não haverá para Silvio Santos.
Fala mais sobre a maldição do filme e a morte dos três produtores.
As pessoas conhecem mais a história do Ivan Novais, que morreu em 1998. É que foi realmente trágico: tínhamos acertado tudo, o Ivan já tinha até alinhavado grande parte da grana para fazer o filme, mandou chamar todos para um almoço, atores inclusive, mas aí, quando estou saindo para encontrá-lo, me ligam dizendo que não era mais almoço que haveria, e sim velório. Só que ainda houve outras tragédias: nos anos 70, um americano teve câncer na garganta; nos 80, foi um espanhol que começou a ter problemas de coração logo que começamos a trabalhar no filme. O Dennison (Ramalho) e o Paulo (Sacramento) até chegaram a brincar que tinham sócio caso acontecesse algo...
O Jece Valadão, ator do filme, morreu durante as filmagens.
Mas, queira ou não, ele estava doente. Numa entrevista coletiva, fez questão de dizer: se eu morrer, não será culpa da maldição do Zé. Prometi que, acontecesse o que acontecesse, não o tiraria do filme. Tivemos de mexer no roteiro, transpondo algumas ações do personagem dele para o do Adriano (Stuart), mas no fim, na trama, tudo se resolveu bem.
O Brasil tem um sistema de produção afirmado – já chegamos perto de lançar cem longas por ano no país (dados referentes, é óbvio, a 2008). Não é estranho que um projeto tão antigo sobre um personagem tão clássico tenha tantas dificuldades para sair do papel?
Esse sistema é uma enganação. O que existe no país é uma panela que toma conta da verba destinada ao cinema. Ela é formada em sua maioria por cineastas e produtores que vêm do Rio. Quando ganham sua grana, compram seu apartamento, mobiliam-no e, com o que sobra, fazem seus filmes. Isso tem de acabar. As pessoas que liberam os recursos precisam prestar mais atenção nisso, precisam analisar melhor o passado de quem recebe o dinheiro.
O quanto há da mão do Dennison e do Paulo em Encarnação do Demônio?
Eles são muito bons. Também foi ótimo ter com quem trocar idéias durante a realização da fita. Essa foi uma das diferenças que mais senti: pela primeira vez, pude conversar com a equipe sobre filmes de terror, compartilhar gostos e experiências, desabafar. Todo mundo curtia coisas parecidas.
Foi muito diferente trabalhar com mais recursos?
Sabe que o pessoal não acreditava que eu dispensava essa história toda de efeitos de computação etc.? Achavam que, tendo mais dinheiro, eu não faria tudo artesanalmente. Achavam que meu método era lenda. Resultado: quando a filmagem começou, todo mundo ficou apavorado. A cena em que utilizamos 3 mil baratas foi uma loucura. A garotada foi toda trabalhar de botas, com cassetetes... Estavam mais assustados que a atriz que mergulhou a cabeça no tonel com os insetos. Tivemos de posicionar as câmeras muito longe, o que atrapalhou demais o processo. Vê se pode...
Que referências visuais vocês usaram, por exemplo, em duas cenas marcantes como a do inferno, com José Celso Martinez Corrêa, e aquela em que o Zé do Caixão tem alucinação enquanto transa com uma garota, imaginando uma inundação de sangue durante o orgasmo?
Deixei o Sacramento, o Zé Bob (fotógrafo) e todo mundo livre quanto a isso. Fui mais rígido mesmo na escolha dos atores. O personagem do Zé Celso, por exemplo, foi feito pensando no (Luís Sérgio) Person. Mas o Zé Celso também está excelente.
Por que a decisão de fazer o personagem sair do Interior e atacar em São Paulo?
Isso faz parte da modernização do Zé do Caixão. Com a violência urbana que há hoje em dia, achei que ele funcionaria muito bem na cidade grande. Em pleno 2008, a tensão da metrópole tem tudo a ver com o terror do personagem. Foi uma renovação toda pensada, por toda a equipe, que deu um fim muito digno à trilogia, um fim que tem muito a ver com seu tempo.
Mas o final deixa a história do Zé do Caixão em aberto. Pode haver alguma continuação?
Claro que sim! Não é por outro motivo que aquele raio cai sobre o túmulo do Zé na cena final. Se eu tiver saúde, e o público pedir, podemos retomar a história, sim.