Além de estampar cartazes de filmes nacionais estreantes, os mais de cem quadros expostos na sede da Agência Nacional do Cinema (Ancine) também mostravam parte da história do cinema nacional. Enquanto outros pôsteres eram retirados periodicamente e substituídos por outros (assim como ocorre em um cinema), filmes clássicos e que marcaram época no Brasil tinham seu lugar fixo nos corredores do prédio.
Todos eles acabaram removidos após decisão da atual direção do órgão e hoje estão em um depósito, no centro do Rio de Janeiro. Além disso, dados de filmes nacionais que, até então, estavam disponíveis no site da agência, foram removidos da página. A Ancine afirma que resolveu priorizar sua área reguladora em relação à de fomento ao cinema e, por uma questão de isonomia, optou por não divulgar mais nada nos prédios da sua sede.
A decisão polêmica provocou a ira de artistas, cineastas e simpatizantes, que começaram a usar as redes sociais para postar cartazes de filmes nacionais em forma de protesto.
Conheça três filmes brasileiros clássicos que estavam expostos na sede da Ancine:
Deus e o Diabo na Terra do Sol (1964)
O trabalho que projetou o baiano Glauber Rocha (1939-1981) entre os grandes realizadores de seu tempo foi apresentado na competição pela Palma de Ouro do Festival de Cannes de 1964 e reforçou os pilares do cinema novo, contribuição brasileira à onda de renovação estética e narrativa que impactou diferentes cinematografias no embalo da nouvelle vague francesa.
Em Deus e o Diabo na Terra do Sol, Glauber constrói seu próprio universo e sua própria linguagem. Absorve elementos de vanguarda visual e ao mesmo tempo é reverente à influência clássica do neorrealismo italiano que teve muita força em uma geração anterior — que e moveu seu mestre Nelson Pereira dos Santos em Vidas Secas (1963), filme que estabelece a transição entre esses dois movimentos
Crônica social do Brasil profundo, Deus e o Diabo na Terra do Sol, acompanha a saga de um camponês (Geraldo Del Rey) que mata um "coronel" que não quis lhe pagar uma negociação com gado e foge sertão adentro junto com sua mulher (Yoná Magalhães). O casal encontra refúgio em um grupo liderado por um tipo messiânico e revolucionário, moldado no Antônio Conselheiro de Canudos . No encalço deles, segue um matador (Maurício do Valle) contratado por latifundiários. A consagração mundial de Glauber seria chancelada com seus filmes seguintes: Terra em Transe (1967), ganhador do Prêmio da Crítica em Cannes, e O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro (1969), prêmio de melhor direção no festival francês, no qual retoma o personagem do matador.
O Bandido da Luz Vermelha (1968)
A partir de um famoso caso da crônica policial paulista, Rogério Sganzerla (1942-1998) cravou, neste que foi seu primeiro longa-metragem, um marco no cinema brasileiro. Combinando de forma inventiva diferentes gêneros e adicionando à colagem uma narrativa radiofônica, o diretor catarinense conta a história de um excêntrico ladrão que ataca mansões em São Paulo, causando alvoroço nas autoridades e na imprensa.
Apresentado no período mais sombrio da ditadura militar, o transgressor e libertário O Bandido da Luz Vermelha era anunciado por Sganzerla como um "faroeste sobre o Terceiro Mundo". A caçada ao marginal, vivido por Paulo Villaça, ganha um tom saboroso, embebido em referências ao policial noir americano, ao neorrealismo italiano, à nouvelle vague francesa e à brasileiríssima chanchada.
Cabra Marcado para Morrer (1984)
Em 1964, o paulista Eduardo Coutinho (1933-2014) filmava um projeto de ficção encenando com atores locais do Engenho Galileia, interior de Pernambuco, a história do assassinato de um líder camponês no interior da Paraíba, em 1962, a mando de fazendeiros – não pôde filmar na região onde ocorreu o crime em razão do ainda presente clima de violência e tensão.
O golpe militar no Brasil interrompeu a produção. Em 1981, Coutinho trabalhava no Globo Repórter quando decidiu voltar ao Engenho Galileia para novos registros. Reencontrou os moradores-personagens e moldou no confronto entre as imagens do passado e do presente a obra-prima do cinema documental Cabra Marcado para Morrer, filme até hoje estudado e dissecado, tamanhas são suas virtudes como cinema e registro histórico.
Coutinho centrou seu foco na reconstrução da trágica saga de Elizabeth Teixeira, viúva do líder camponês, e seus 11 filhos, família estilhaçada e dispersada que ilustra os caminhos tortos do Brasil à sombra da repressão e da injustiça social. Cabra... foi lançado no final de 1984, nos últimos suspiros da ditadura. No correr dos anos, Coutinho consagrou-se como o grande mestre do documentário nacional, dono de uma marca autoral única e inconfundível.