A falta de memória constitui um atalho para o autoritarismo, defende o filósofo Jason Stanley em Como Funciona o Fascismo (L&PM). Desconhecer o passado é deixar a porta aberta para que episódios vividos sejam reinventados ao bel prazer de quem molda seu discurso motivado por interesses escusos. Na transformação do real em mito, vale tudo, da descontextualização de atos e palavras à ousadia de reescrever capítulos inteiros da História, inclusive recentes.
A memória é constituída de imagens, e acessá-las, no íntimo de cada um, de algum modo significa reinventá-las. É o que pode aproximar o ato de ver um filme de uma sessão de terapia: ver necessariamente significa rever, à medida que a absorção de um discurso audiovisual se dá com a subjetivação, por sua vez moldada nas experiências pessoais de cada um e conformada a partir do que o sociólogo Alfred Schütz chama de “estoque de conhecimento” (grosso modo, aquilo que compõe nosso banco particular de informações e imagens internalizadas ao longo do tempo). Não há visualidade sem memória, do mesmo modo que não há como lembrar de nada sem interpretar o que já passou – a partir das imagens que o passado nos legou.
É nesse sentido que – em via contrária ao esquecimento que pode levar ao fascismo –, o cinema se materializa como atalho ao conhecimento que pode levar à libertação. Ver é poder, em muitos sentidos, e essa máxima de algum modo pauta o 23º Encontro Socine, congresso anual da Sociedade Brasileira de Estudos de Cinema e Audiovisual, que volta a ser realizado no Rio Grande do Sul após uma década e meia. Entre terça (8/10) e sexta-feira (11/10), o campus Porto Alegre da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos) sediará mais de uma centena de apresentações de pesquisas realizadas por estudantes e professores de todo o país, além de mesas em torno do tema Preservação e Memória Hoje. Na Cinemateca Capitólio, segunda (7/10), às 19h, integrando parte do que se convencionou chamar de pré-Socine, haverá uma sessão do longa-metragem Deslembro (2018), da porto-alegrense Flávia Castro, sobre uma jovem (Jeanne Boudier) vivendo em Paris que, com a Anistia decretada no Brasil, volta com a família ao país do qual mantém lembranças mínimas. Flávia, uma cineasta dedicada a investigar a pessoalidade da memória em contextos políticos extremos (especificamente a ditadura militar, um período fundamental para a formação da sociedade brasileira atual), estará presente na ocasião para conversar com o público.
Deslembrar não é uma opção – nem para a personagem, alter ego da realizadora (que também viveu no Exterior quando criança, retornando na virada dos anos 1970 para os 1980), nem para uma sociedade que queira se conhecer para, assim, tornar-se livre.
Ocorre que o processo de encontro com o próprio passado é inevitavelmente subjetivo (cada um tem o seu “estoque” de imagens). E, como tal, depende do presente. Lançar um olhar para o que já foi vivido é uma atitude do momento atual, que carrega variáveis conforme cada contexto. Daí a dupla interpretação do tema desse 23º Encontro Socine: Preservação e Memória Hoje porque, em primeiro lugar, sempre é tempo de libertar-se (sempre é “hoje”) e, segundo, porque nunca foi tão fácil informar-se e adquirir conhecimento (lembrar) e, paradoxalmente, desinformar-se (deslembrar). Se as notícias são muito facilmente acessíveis na atualidade, igualmente é certo que há profusão das chamadas notícias falsas – e, por via de consequência, de autoritarismo. Mas também, fundamentalmente, de reação às restrições à liberdade de pensamento.
É importante notar ainda que a capital gaúcha volta a receber o encontro apenas quatro anos após a abertura da Cinemateca Capitólio, verdadeiro templo de preservação da história do cinema e do audiovisual no país. Há particularidades inerentes ao processo de construção da memória, mas ícones como o quase centenário prédio da esquina da Demétrio Ribeiro com a Borges de Medeiros são fundamentais para reafirmar a necessidade de lembrar sempre –e deslembrar nunca. A realização da Socine em Porto Alegre também é uma afirmação disso.
23º Encontro Socine
A edição 2019 do congresso anual da Sociedade Brasileira de Estudos de Cinema e Audiovisual ocorre de terça a sexta-feira, na Unisinos Porto Alegre (Avenida Nilo Peçanha, 1.600). Haverá apresentações de pesquisas realizadas na área em todo o país, além de lançamentos de livros e exibições de filmes na Cinemateca Capitólio (Rua Demétrio Ribeiro, 1.085). A programação completa está disponível em socine2019.com.br.