O estudo mais recente sobre igualdade de gênero em Hollywood não trouxe boas novas para as ativistas da era MeToo. Publicada em janeiro deste ano, a pesquisa da Universidade do Sul da Califórnia constatou que, dos cem filmes norte-americanos de maior bilheteria do ano passado, não chegam a quatro os realizados por mulheres — média de uma diretora para cada 22 diretores que persiste há uma década.
Enquanto isso, no Oriente Médio, as mulheres assumem cada vez mais lugares atrás das câmeras. Segundo outra pesquisa, da Universidade Northwestern, no Qatar, mais de um quarto dos filmes independentes realizados nos países árabes de 2011 a 2015 foram dirigidos por mulheres.
Em nações como Líbano e Tunísia, os números são ainda maiores, de 37% e 30%, nesta ordem. São recortes distintos, é claro, realizados em indústrias com grandes diferenças de escala e impacto financeiro, mas não deixa de ser um indício de que algo mudou numa região onde mulheres tendem a ficar para trás.
As porcentagens de participação de mulheres por ali ultrapassam tanto as registradas na cena independente norte-americana na mesma época, de 27%, segundo a Universidade Estadual de San Diego, como as da produção brasileira, de 20%, de acordo com a Ancine.
A tendência também pode ser vista nos maiores festivais e prêmios de cinema do mundo. A primeira indicação de um filme de uma diretora árabe ao Oscar de melhor filme estrangeiro veio com Cafarnaum, da libanesa Nadine Labaki. Este ano também teve a presença de diretoras de países como Marrocos, Egito e até mesmo Arábia Saudita nos festivais de Locarno, Veneza e Cannes.
Também o Brasil tem prestado atenção no fenômeno. Em março, o Centro Cultural Banco do Brasil carioca fez um festival dedicado a essa produção. Na quarta (7), foi a vez de a Mostra Mundo Árabe de Cinema inaugurar no Cinesesc uma edição na qual mais da metade dos filmes são de autoria feminina.
Explicação
Mas o que explica a força da filmografia feminina em países onde as mulheres têm menos direitos que os homens?
— Não acho que isso seja um movimento organizado. Não houve nenhuma manifestação a favor de paridade de gênero na indústria ou algo parecido — afirma o crítico de cinema egípcio Joseph Fahim, ex-curador do Festival Internacional de Cinema do Cairo.
Lembrando que as mulheres já tinham ocupado a linha de frente do cinema árabe nos anos 1970, quando se destacaram no campo documental, ele situa o início desta nova geração de diretoras há cerca de dez anos, quando eclodiu a Primavera Árabe.
Não que o clima de manifestações pró-democracia que pipocaram na região na época — e que, em alguns casos, culminaram em regimes ainda mais conservadores — necessariamente contamine a produção dessas novas diretoras, diz Fahim. Mas, defende o crítico, elas ajudaram o Ocidente a prestar atenção na produção cinematográfica daquele lado do mundo.
— Honestamente, era a febre da semana. E não só a Primavera Árabe, como também a crise dos refugiados impactou diretamente a presença de filmes árabes nos festivais e seu financiamento.
Além das portas abertas por parte da comunidade internacional, Fahim lista uma série de iniciativas de fomento árabes que também datam da época.
São organizações como o Instituto de Cinema de Doha, no Qatar, fundado há nove anos, ou o Fundo Árabe para a Arte e a Cultura, no Líbano, que juntos financiam, em média, 60 filmes por ano.
O fato de que essas instituições têm mulheres em seus conselhos é outro fator que contribuiu para o crescimento de obras com assinatura feminina, segundo o crítico.
— Na Europa, as pessoas responsáveis pelos fundos são homens brancos de meia-idade — diz ele.
Disparidade
Uma das convidadas da Mostra Mundo Árabe, a diretora argelina Sofia Djama afirma que as coproduções internacionais permitiram a emergência de uma a geração inteira de cineastas em seu país.
Ressaltando que ela não se considera árabe, mas magrebina, isto é, descendente das populações berberes do noroeste africano, ela afirma que na Argélia a quantidade de filmes realizados por mulheres e homens é quase equivalente.
Mas o número total de títulos é baixíssimo — menos de dez por ano. No Brasil, por exemplo, foram lançados 185 longas em 2018. Entre os motivos, enumera Djama, estão a dificuldade de obter financiamento estatal e a distribuição local dos filmes, já que os cinemas são poucos mesmo nas cidades grandes.
— Na França, as cineastas reclamam muito da disparidade de gêneros — diz a cineasta. — Na Argélia, a luta tem mais a ver com a situação política do país, que mulheres e homens combatem lado a lado.
Seu longa Os Afortunados, que a realizadora debate nesta quinta (8) no CineSesc (em São Paulo), aborda essa realidade ao retratar um casal traumatizado pela guerra civil em seu país. Outras autoras que compõem a programação também buscam retratar o mundo ao seu redor, ao se voltarem para temas como memória familiar e identidade nacional.
Os assuntos não são distantes daqueles tratados pelos diretores homens da região, analisa o curador da mostra, Arthur Jafet. Ao mesmo tempo, acrescenta, eles contradizem um estigma associado ao mundo árabe ao mostrar que as mulheres também se engajam com suas sociedades.
— Sempre redescobrimos a cultura árabe, mas as mulheres de lá fazem filmes e lutam por seus direitos há décadas — comenta a argentina Carolina Bracco, que pesquisa cinema e gênero no mundo árabe.
O que não significa, diz Fahim, que as disparidades de gênero estejam enfim resolvidas na região.
— O Ocidente tem muitas concepções equivocadas sobre o mundo árabe, mas é fato que essas são sociedades muito patriarcais e conservadoras. A situação ainda é ruim para as minorias, sejam elas mulheres, LGBTs ou cristãos. É por isso que é importante continuar a criar filmes.