Em um perfil sobre Marcia Haydée publicado no The New York Times em 2 de maio de 1971, por ocasião de uma temporada do Stuttgart Ballet na Metropolitan Opera, John Gruen escreveu que a brasileira, então com 31 anos, não apresenta fora do palco "a imagem da bailarina etérea e perfeitamente moldada". Em cena, entretanto, é "um fenômeno raro": uma virtuose da dança que também é uma notável atriz dramática.
Essa dupla qualidade veio a marcar definitivamente sua longeva trajetória. O fato de não ser igual às outras a distinguiu como uma das maiores do mundo, mas também tornou sua carreira tortuosamente épica. Na audição para Stuttgart, no início dos anos 1960, Marcia não agradou a toda a banca, mas conquistou a confiança do coreógrafo John Cranko, que exerceu papel fundamental em sua ascensão. Depois da morte dele, Marcia o sucedeu no comando da companhia (após uma tentativa com Glen Tetley), vindo a acumular as funções de diretora artística e primeira bailarina.
Surpreendentemente para o olhar de hoje, o grupo era composto por "rejeitados", na palavra que Marcia empregou em outra reportagem no Times: "Em 1961, não acho que alguma companhia teria me escolhido para qualquer coisa além do corpo de baile". Mas a especialidade de Cranko, disse a bailarina em 1977, era transformar rejeitados em "alguma coisa". "Foi por isso que nos tornamos o que somos."
Além de Cranko, Marcia trabalhou com os coreógrafos Kenneth MacMillan, John Neumeier e Maurice Béjart e dançou ao lado de Richard Cragun (seu parceiro dentro e fora do palco durante 16 anos), Ray Barra, Egon Madsen e Mikhail Baryshnikov. "Não sou uma pessoa que fica grudada ao passado, isso seria perda de tempo. Enquanto eu estiver nesse mundo, vou seguir aprendendo, vendo as coisas novas e olhando, admirando", disse em entrevista a Zero Hora em 2016, antes da vinda à Capital do espetáculo Zorba, o Grego, do Ballet de Santiago, companhia que dirige atualmente.
Um olhar para o outro
Esse princípio segundo o qual o melhor ainda está por vir motiva o documentário Marcia Haydée — Uma Vida pela Dança, que estreia no circuito brasileiro nesta quinta-feira (18), data em que Marcia completa 82 anos. Em Porto Alegre, será exibido no Guion Center e no Espaço Itaú. Dirigido por Daniela Kallmann, o filme traça um panorama da obra da bailarina da infância em Niterói (RJ) ao estrelato por meio de materiais de seu acervo pessoal. São vídeos de performances e ensaios e cartas escritas para a mãe desde que se mudou para Londres, na juventude, para tentar a carreira internacional. O documentário destaca entrevistas com a própria Marcia e com figuras como Ana Botafogo, Deborah Colker, Reid Anderson (diretor artístico do Stuttgart Ballet) e John Neumeier (diretor artístico do Hamburg Ballet), entre outros.
Quem também oferece seu depoimento é Monica Athayde Lopes, irmã de Marcia e produtora associada do documentário, que morou com ela em Stuttgart durante 17 anos, a partir do início dos anos 1980, depois da separação de Cragun. Em um momento difícil da vida da irmã, Monica apresentou a ela seu professor de ioga, Günter Schöberl, com quem Marcia está casada há mais de 20 anos. Foi nessa longa temporada, compensando a distância durante a infância, que Monica descobriu a magnitude da artista, como conta em entrevista por telefone:
— Além de ser uma musa, vi que era um ser humano humilde, fraterno, gentil, delicado. Isso me fascinou, principalmente porque hoje todos querem 15 minutos de fama e pecam pela prepotência e pelo nariz em pé.
Os depoimentos registrados no filme confirmam isso, descrevendo Marcia como uma pessoa carismática e afetuosa na vida pessoal e no trato com os colegas. Em uma das cenas, aparece ajudando a bordar o figurino de uma bailarina do Ballet de Santiago.
— Ela tem um olhar para o outro que é muito emocionante — diz Monica. — Escuta olha, se torna uma mãe para todos, dá afeto. Isso é o mais extraordinário nela.