O pedigree da comédia Um Amor Inesperado é mais argentino do que misturar Fernet com Coca-Cola. Para começar, reúne Ricardo Darín e Mercedes Morán, sinônimos da “buena onda” do cinema do país. Na direção está Juan Vera, que produziu longas de Pablo Trapero e Lucrecia Martel. O roteiro, escorado nos bons diálogos, tem uma levada cômica, mas deixa transparecer alguma melancolia platina, milonguera.
Apesar do título genérico, é original o mote dessa obra, que foi o segundo longa argentino mais visto pelos vizinhos em 2018 (só perdeu para o pulsante thriller O Anjo).
Marcos (Darín) e Ana (Morán) estão casados há 25 anos. Quando o único filho deles parte para estudar fora, o ninho vazio faz irromper inquietações que encerram o longevo casamento. E leva os dois a lidar com as peculiaridades de se estar solteiro na meia-idade. Em tempos de Tinder. Nos três anos que se seguem, cada um experimenta a seu modo a nova liberdade.
Ao longo de 136 minutos (uma eternidade para uma comédia romântica tradicional), o enredo vai mudando de registro. Se o primeiro ato é mais dramático, e o terceiro, mais romântico, é no meio que o filme ganha um tom mais escrachado com o desfile de tipos esdrúxulos com que Ana e Marcos se envolvem.
Mas o que ambos buscam – e o que os levou à separação – tem menos a ver com amor e mais com vazio existencial. Afinal, como a própria Ana havia se questionado ao decidir pela separação: “Qual é o próximo passo da vida?”.
– Essa é a história de pessoas que exteriorizam perguntas que em geral só fazemos a si mesmos, em silêncio – diz Darín, por telefone, do Uruguai, onde acompanha a edição do segundo filme que produz com o filho, Chino. O primeiro foi Um Amor Inesperado.
O diretor Juan Vera também vê a história como mais do que mera comédia romântica:
– Eles não são um casal que estava mal ou se odiando. São plenos e o que querem é intensidade. O conflito é que gostam um do outro, mas não têm respostas para as próprias vidas.
Casado há mais de 30 anos com a mesma mulher, Darín tem na ponta da língua a cartilha para a união duradoura: – Se você tem de botar algum esforço na sua relação é porque algo nela não anda bem.
Ao estrear na direção, Vera evoca sua bagagem de produtor e roteirista de algumas das principais obras do cinema argentino das últimas décadas, sobretudo o clima espirituoso de O Mesmo Amor, a Mesma Chuva e O Filho da Noiva, comédias do premiado Juan José Campanella, um de seus parceiros habituais.
É o que ajuda a explicar a volta de Darín ao humor escancarado (Truman e Um Conto Chinês tinham uma pegada mais dramática do que propriamente cômica).
— Nem sempre aparecem bons roteiros em comédia. No geral se apoiam em gags, e eu gosto mais quando se escoram em situações reais — explica o ator. — Falar de amor hoje, em tempos de cinismo, é algo revolucionário. Eu fiquei tocado pela inteligência dos diálogos.
De fato, há algo nas falas dos personagens que resume a tão incensada (e por vezes invejada) produção cinematográfica do país vizinho — pelo menos, a que é exportada. Tem a ver com um investimento do roteiro em tiradas mordazes e nas farpas irônicas que Ana e Marcos soltam em cenas que, nas mãos de autores menos sutis, poderiam virar dramalhões com berros, choro e gente descabelada.
— Estamos culturalmente acostumados à ironia. Nós nos comunicamos assim no dia a dia — afirma Darín sobre as elogiadas especificidades das produções de seu país.
O ator diz que foi o êxito de Clube da Lua, que filmou com Campanella em 2004, que abriu os seus olhos para a boa repercussão dos longas de seu país por aqui, em particular:
— Aquele era um filme que falava de como os clubes de bairro eram importantes para tirar as crianças da rua — conta. — Nossa constituição social, tanto na Argentina quanto no Brasil, é muito similar.
Mas é um êxito cambaleante. Apesar da boa bilheteria de O Anjo e Um Amor Inesperado, os últimos anos não se provaram dos mais afortunados para a produção vizinha.
Muitos atores e cineastas estão em guerra com o presidente Mauricio Macri, que mexeu na estrutura da autarquia local de fomento ao cinema. Campanella, último vencedor argentino do Oscar, e o ator Leonardo Sbaraglia (Relatos Selvagens) estão entre as vozes que se insurgiram. Darín exime o governo da culpa pela atual turbulência:
– Vivemos de crise em crise. Estamos tão acostumados a elas que estamos vacinados, perdemos o impacto da surpresa.