Em maio passado, Kirill Serebrennikov não pôde apresentar Verão na competição pela Palma de Ouro no Festival de Cannes, onde o filme obteve boa recepção da crítica, porque cumpre pena de prisão domiciliar por conta de um nebuloso episódio que o fez bater de frente com o governo do presidente da Rússia, Vladimir Putin (leia mais abaixo). Assim, é interessante assistir sob esse contexto o manifesto libertário que Serebrennikov apresenta em Verão, que estreia em Porto Alegre nesta quinta-feira (15).
O diretor investe sobre temas que têm inspirado, na Rússia e em países integrantes da antiga União Soviética, ótimos filmes que abordam, de forma direta ou residual, com olhar contemporâneo ou revisionista, os anos passados sob o fechado regime comunista. Ao mesmo tempo em que se abriram para o mundo com o colapso do regime, nos anos 1990, a Rússia e algumas dessas repúblicas vizinhas ainda convivem com fantasmas do passado, representados por traços de um saudosismo totalitário, pelo estado de beligerância latente e certa intolerância em questões relativas à diversidade sexual e religiosa. Com essa proposta, Serebrennikov projeta-se ao lado de cineastas como Sergey Loznitsa e Andrey Zvyagintsev, autores que costumam apresentar nos mais importantes festivais de cinema do mundo robustos painéis sociais e históricos sobre a sociedade russa.
Verão combina ficção com episódios reais. O recorte cronológico se dá no começo dos anos 1980, quando tomou corpo em Leningrado, atual São Petersburgo, uma cena roqueira underground que acendeu os ânimos da juventude local – e que, em analogia retrospectiva, pode ser visto como o início da ebulição que levaria, somada a outros relevantes fatores de insatisfação popular, à desintegração da União Soviética dalia a menos de 10 anos.
Despontava nesse cenário musical nomes como Mike Naumenko (1955 – 1991), líder da banda Zoopark. Fã de Bob Dylan, Lou Reed, T. Rex e David Bowie e grande conhecedor do rock clássico ocidental, Naumenko torna-se uma espécie de mentor de Viktor Tsoy (1962 – 1990), jovem e talentoso bardo com quem passou a dividir o coração dos fãs – e que acabaria por ser tornar um ídolo de dimensão ainda maior que seu mestre.
Verão destaca este ambiente de camaradagem, mais do que de competição, entre Naumenko (vivido por Roma Zver, ele próprio músico popular na Rússia, à frente da banda Zveri) e Tsoy (papel do alemão de origem sul-coreana Teo Yu). A tensão se dá fora do palco e do estúdio de gravação, em razão da atração que Natasha (Irina Starshenbaum), mulher de Naumenko, sente por Tsoy. Mas esse flerte, bem morno por sinal, pouco afeta a convivência dos artistas e tem quase nenhuma relevância na trama.
Esse universo retratado em Verão, pouco conhecido fora da Cortina de Ferro, é bastante curioso, pois aqueles jovens parecem viver um impacto concentrado de décadas de mudanças musicais e comportamentais. Para eles Rolling Stones e The Doors são tão novidades como Sex Pistols e Joy Division. Blues e rock and roll de raiz, psicodelia hippie, fúria punk, balanço da new wave e melancolia gótica fervem no mesmo caldeirão de influências – era comum à época essa influência se transformar em plágio descarado, com artistas menos inspirados apenas vertendo para o russo canções em inglês.
Serebrennikov imprime em Verão destacada inventividade. A "realidade", em que os limites da liberdade criativa era constantemente posto à prova no embate com autoridades e censores do governo, é representada em preto e branco, flertando com o registro documental. A câmera segue a trupe de músicos e seus amigos com muitos planos-sequências, e existe entre eles um documentarista responsável pela intervenção das imagens coloridas.
Funciona muito bem ainda as digressões escapistas daquela cinzenta realidade na forma de videoclipes pontuados pela manipulação das imagens, particularmente inspiradas quando ao som de Psycho Killer (Talking Heads) e Perfect Day (Lou Reed). Como bem destaca Verão, a arte e a juventude são agentes permanentes de transformação de uma sociedade, viva ela sob as luzes da democracia plena ou sob as sombras da repressão. E quando essas vozes querem se fazer ouvir, nem é preciso microfone e amplificador.
Verão
De Kirill Serebrennikov
Drama, Rússia /França, 2018, 126min.
Estreia quinta no Espaço Itaú 8, com sessões às 13h20, 19h20, 21h40.
Diretor do filme está na mira do governo Putin
Um dos nomes mais proeminentes do cinema russo contemporâneo, Kirill Serebrennikov cumpre prisão domiciliar em Moscou há mais de um ano, sob acusação de desvio de recursos público, caso que descreve como "absurdo". As primeiras audiências de seu julgamento começaram este mês de novembro. Se for condenado, pode cumprir até 10 anos de cadeia. O diretor é acusado de se embolsar o equivalente a cerca de US$ 2 milhões provenientes de subvenções destinadas a seu teatro em Moscou, em função de um sistema de orçamentos e contas superfaturadas entre 2011 e 2014. Em julho, quando o período de prisão domiciliar foi prorrogado, o diretor de 49 anos garantiu que o dinheiro em questão foi efetivamente usado na criação de obras artísticas.
Serebrennikov foi detido em 21 de agosto de 2017, quando filmava um longa-metragem em São Petersburgo. Na ação, seu apartamento em Moscou e o Centro Gogol, um dos mais importantes espaços culturais do país, do qual ele é o diretor artístico, foram invadidos por investigadores. Quatro meses depois, a Justiça ordenou o embargo de seus bens. Vários colaboradores do cineasta também foram investigados. Para seus defensores, Serebrennikov paga o preço do auge do conservadorismo na Rússia, onde artistas enfrentam uma pressão cada vez maior do governo de Vladimir Putin.
Serebrennikov aborda em seus filmes temas como política, religião e sexualidade, postura criticada tanto por religiosos ortodoxos quanto pelas autoridades. Defensor dos direitos LGBT, o diretor ficou no centro de uma polêmica com o governo em 2017, quando comandou a encenação de um balé inspirado na vida do célebre bailarino gay Rudolf Nureyev (1938 – 1993), que desertou da antiga União Soviética durante uma temporada do Balé Kirov na França, em 1961 – um foto de Nureyev nu, em registro de Richard Avedon, era projetada no palco. A peça estreou após a prisão do diretor e reforçou a opinião de quem vê na ação do governo contra ele uma represália embalada pela censura
– Eu nunca roubei nada de ninguém e nunca organizei nenhuma gangue além de um grupo de teatro – disse Serebrennikov no começo do julgamento.
Outro cineasta, o ucraniano Oleg Sentsov, já cumpre a pena de 20 anos a que foi condenado sob acusação de terrorismo, caso que analistas internacionais avaliam também como represália, em razão do ativismo de Sentsov, que criticou Putin em meio ao processo de anexação da Crimeia pela Rússia, em 2014.