Marieta Severo está cansada de sua boa imagem. Ou melhor, da boa imagem marcada na retina do público por mais de uma década como a Dona Nenê, de A Grande Família. Figura carismática e querida pela audiência, Marieta tem se divertido com o desafio de interpretar pessoas que, em suas próprias palavras, não são modelo de comportamento.
Viveu na TV a moralmente dúbia Fanny em Verdades Secretas e foi a pérfida Sophia em O Outro Lado do Paraíso. E está no 46º Festival de Cinema de Gramado encarnando uma mãe nada exemplar. Em Voz do Silêncio, de André Ristum, interpreta Maria Cláudia, mulher com distúrbios psicológicos e uma relação tumultuada com seus filhos, a aspirante a cantora Raquel (Stephanie de Jongh) e o atendente de telemarketing Alex (Arlindo Lopes), que expulsou de casa ao descobrir que o rapaz havia contraído o vírus da aids. O longa teve boa recepção da crítica pela afinidade e qualidade uniforme do elenco, com especial destaque para Marieta.
O que a levou a fazer esse projeto?
Receber um roteiro de um diretor que eu sabia que havia feito dois filme dos quais gostei muito, e ter me apaixonado por aquele roteiro, ter vontade de contar aquela história. Gostei, achei que havia ali uma dramaturgia muito boa, muito bem amarrada, tocava em pontos e tinha um olhar sobre o ser humano que me interessava.
Você vem de um longo tempo como uma mãe carismática e querida pelo público, a Dona Nenê, de A Grande Família. Sua personagem em A Voz do Silêncio, uma mãe desequilibrada e problemática, é uma tentativa de variar esse espectro?
É claro que depois de 14 anos fazendo a Dona Nenê não tem nenhuma mãe exemplar que me atraia fazer. Fui atraída pela Fanny, de Verdades Secretas, que não era propriamente um exemplo de bom comportamento, e depois fui fazer uma megavilã, a Sophia, de O Outro Lado do Paraíso. No filme, faço uma mãe que é completamente mergulhada num universo de culpa em relação ao filho. Ela rejeita o filho soropositivo, é uma mãe que tem um problema psiquiátrico, esquizofrenia. Então, nenhuma personagem como a Dona Nenê vai me atrair, acho que esgotei o que tinha a fazer como mãe exemplar.
Um ponto interessante em A Voz do Silêncio é sua estrutura em mosaico. De algum modo isso a atraiu?
É muito triste o que estamos vendo na sociedade brasileira, em que a compreensão, o diálogo e a solidariedade deram lugar ao ódio, ao acirramento de visões diferentes. Se você não pensa igual a mim, então você é péssimo e eu não quero nada com você, nenhuma relação, nenhuma conversa
MARIETA SEVERO
Também. Achei uma maneira muito original de colocar o ser humano na tela e que é muito delicada, muito poética, a de acompanhar aquelas pequenas vidas, aquelas pessoas lutando no ambiente daquela grande cidade, que tem atrativos fantásticos, mas que também tem esse lado B que é bruto, cruel, que dá pouco espaço para a sobrevivência digna para muitas pessoas que batalham e lutam pela sua sobrevivência.
A senhora menciona um “lado B” da metrópole, e este filme chega falando de conexões em um momento em que o Brasil vive uma polarização política muito acirrada. O que pensa dessa circunstância?
É muito triste o que estamos vendo na sociedade brasileira, em que a compreensão, o diálogo e a solidariedade deram lugar ao ódio, ao acirramento de visões diferentes. Se você não pensa igual a mim, então você é péssimo e eu não quero nada com você, nenhuma relação, nenhuma conversa. Isso é muito ruim, é um caminho muito triste e antidemocrático, esse acirramento de resolver as coisas na bala, no grito, na imposição, na ordem estrita. Não é o melhor caminho ou o melhor espaço para o ser humano florescer. Há espaços sociais e políticos, inclusive, em que o ser humano floresce e o que há de melhor em nós é estimulado. E há espaços que são restritivos, que vão tocar no que há de pior em nós. Então, a pergunta é: que espaços vamos querer criar para que o que existe de melhor em nós floresça, a solidariedade, o amor, a capacidade de enxergar e aceitar o outro?
A senhora tem uma história de participação na resistência cultural à ditadura militar. Como vê hoje a onda de críticas à comunidade artística e ao financiamento da cultura?
A cultura é de todo mundo, é minha, é sua, é nossa. O que produzimos de cultura é único, só nós produzimos; logo, estigmatizar a nossa cultura é uma coisa suicida. Acho que a cultura deve ser valorizada por todos nós, porque é a nossa voz, é como nos representamos, é quem somos. Então o discurso: “Ah, de que serve um teatro, melhor fazer um hospital”, é enganoso. Hospital tem de se fazer sempre, escola tem de se fazer sempre, é uma atenção primordial. Mas não em detrimento da cultura. Você não pode colocar uma coisa contra outra. Quando você tem uma cerimônia como a abertura das Olimpíadas, e você tinha ali uma demonstração do que nós somos, todo mundo achou lindo e ficou embasbacado. O que tínhamos ali? Tinha teatro, tinha música, tinha esporte, o que nós somos, o que faz parte de nossa cultura. E aí todo mundo bateu palma e achou lindo. Mas para aquilo ali existir tem de haver incentivo.