Estreou ontem na Mostra Competitiva do Festival de Cinema de Gramado um dos filmes com maior potencial para se tornar um “cult” bizarro apresentados neste festival (o outro é o divertido curta brasileiro Retirada para um Coração aos Berros, que mistura o sertão, a velhice, alienígenas e heavy metal). Produção com um visual entre o exuberante e o artesanal e uma delirante narrativa que passeia não apenas pelos mitos dos povos andinos mas pelas estruturas mitológicas de qualquer narrativa de herói, o filme desagradou boa parte da crítica presente, mas público gostou de sua estranheza.
Coprodução entre Bolívia e Uruguai, Averno, sétimo filme do diretor boliviano Marcos Loayza, se apresenta, desde o título como uma reinvenção mitológica (Averno é o vulcão na Itália que os antigos romanos consideravam uma das entradas para o mundo subterrâneo, donde também se tornou um sinônimo para inferno). O jovem engraxate Tupah, que vive numa favela nos altiplanos com sua família, desce a La Paz todos os dias para trabalhar e encontrar com seus amigos também engraxates numa esquina da Capital.
Certo dia, após ter um estranho sonho com seus dois tios gêmeos, Tupah é procurado em sua esquina de sempre por um esquivo oficial militar que deseja encontrar o tio do garoto, Jacinto “Vinho Tinto”, tocador de tuba em uma banda contratada para se apresentar no enterro de um oficial importante no dia seguinte. O problema é que Jacinto, ainda sofrendo pela morte de seu irmão gêmeo, anos antes, é um beberrão imprevisível cujo paradeiro é desconhecido. O oficial promete dinheiro se Tupah encontrar seu tio, e ameaça represálias à sua família se ele não o fizer. Assim, Tupah embarca numa viagem pela noite de La Paz, que se prova um mundo paralelo, em que bares e prostíbulos são, na verdade, disfarces para figuras mitológicas da tradição andina interessadas em impedir ou ajudar o jovem herói em sua jornada.
Inicialmente acompanhado de um de seus amigos, Tupah tem de cumprir sua missão sozinho, e a determinado ponto a jornada se torna de sobrevivência mais do que de busca. Em um dos bares/reinos místicos para os quais viaja à procura de seu tio, Tupah é desafiado para uma luta por um jovem líder de gangue chamado O Príncipe da Noite, e, ao matá-lo no combate, faz recair sobre si a perseguição dos demais integrantes das gangues, o que dificultará ainda mais sua empreitada. Como o título já anuncia, o caminho final para encontrar o tio é um bar chamado Averno, repleto de figuras de poder, e de onde ele pode nunca mais sair.
Como convém a uma jornada aos infernos latino-americana, o filme mescla cores quentes com uma fotografia escura, misto de registro realista com atmosferas oníricas e personagens fantásticos saídos de diversas fontes da tradição andina, como o Anchancho, um duende mineiro subterrâno, o Lari-Lari, um melífluo negociador de almas que, na mitologia aimará, é um animal caçador de bebês ou o Kusillo, bufão das tradições dançantes do altiplano.
— São personagens que mesmo muitos dos espectadores bolivianos não conseguem mais identificar. Infelizmente, o mundo mitológico dos povos andinos está se perdendo — diz o diretor Loayza.
Claro, Averno não é uma obra-prima. A direção de arte é muito inventiva, mas algumas soluções de encrencas nas quais o protagonista se envolve confundem a brevidade e a leveza das narrativas mitológicas com soluções deus ex machina apelativas. Paolo Vargas, que vive Tupah, é um ator de fisionomia impassível, o que o próprio diretor já disse ser uma escolha voluntária que faz referência ao grande cômico do cinema mudo Buster Keaton. Entretanto, para platéias contemporâneas, uma atuação de filme mudo e preto e branco em uma produção acelerada filmada a cores provoca uma desconexão maior do que a desejada. Ainda assim, Averno é um filme original, uma experiência visual bastante diversa de muito do que se viu na cinematografia mais clássica dos longas exibidos até aqui na Mostra Latina. É, assim, um filme que merece ser visto.