Por Márcio Negrini
Doutorando na PUCRS, com pesquisa sobre as representações de Getúlio Vargas em filmes de arquivos
A evocação do passado por meio de um filme traz consigo questões sobre o presente, momento em que a narrativa surge no social em diálogo com o seu tempo. No filme Imagens do Estado Novo 1937-45, que está em cartaz no Espaço Itaú, em Porto Alegre, o diretor Eduardo Escorel apresenta uma montagem de arquivos realizada mediante pesquisas a acervos brasileiros e internacionais. São imagens de cinejornais do regime varguista e estrangeiros, filmes de variedades, imagens produzidas por amadores no ímpeto de registrar o cotidiano daquela época, músicas do período, documentos oficiais, cartas, recortes de jornais e o diário íntimo de Getúlio Vargas.
O filme apresenta uma espécie de consciência sobre si, que se revela por meio da voz do narrador – o próprio Escorel – quanto à possibilidade de se realizar um filme sobre o Estado Novo a partir de imagens que serviram ao regime. O estatuto oficial da propaganda estado-novista, como uma versão construída da história, é colocado em xeque, pois as imagens passam a se relacionar com outros arquivos, como os manuscritos íntimos do presidente.
Esse diálogo entre o íntimo e o social mostra as lacunas da história e, simultaneamente, sugere uma relação entre presenças e ausências, visibilidades e omissões, escolhas que criam uma narrativa. Assim, Escorel revela rastros de seu processo de montagem. As imagens de câmaras e caixas de arquivamento dão a pensar o filme em seus vestígios de uma elaboração da história, portanto, daquilo que se apresenta ao mesmo tempo em que se omite.
Há um duplo movimento em revelar o Estado Novo como a justaposição de fragmentos – que conotam a diversidade de versões sobre um mesmo fato histórico –, e os vestígios que a narrativa sugere quanto a sua tessitura. Isso coloca o filme em diálogo com o seu tempo, pois traz à tona a questão da imagem na contemporaneidade.
Se for possível assumir a ideia de que o nosso modo de ser é espetáculo pela mediação social das imagens, que isso se intensificou a cada sobressalto tecnológico das últimas décadas e que vivenciamos uma crise mediada por imagens que nos assombram, voláteis que são em arquivos cada vez mais híbridos e provisórios, cabe perguntar: em que Imagens do Estado Novo 1937-45 contribui para este debate? O que o filme revela além de um entendimento das contradições democráticas brasileiras, sempre atormentadas pela iminência do autoritarismo e da tragédia histórica?
O filme mostra que não esquecer o passado é criar uma tensão sobre o presente. Isso acontece quando, ao refletir sobre o seu processo de feitura, a própria narrativa incide em relação à validade dos discursos, para revelar uma interpretação que assume sua parcialidade, ou seja, seu caráter lacunar e provisório.
A montagem como forma de pensar a relação entre o passado, o presente e, talvez, o futuro, revela-se por meio de arquivos no contexto de uma sociedade em que somos uma espécie de arquivistas. Com isso, a narrativa sugere a vida como infinidade de desvios possíveis – nossa inventividade na história –, mas, também, os riscos desse modo de ser, isto é, a ambiguidade da imagem como potência de criação e, também, de ardil.
Uma das contribuições de Imagens do Estado Novo 1937-45 está em sugerir que a história se faz pela permanente reinterpretação do passado. O filme mostra que, ao reinterpretar, colocamos em tensão a verdade autoritária, quando é necessário que se exponham algumas verdades que abalem sentidos nocivos à vida democrática. Assim, nossos arquivos e nossas redes de configuração da verdade são postos em questão, e somos provocados a não ser assassinos do presente. Por isso, o filme de Eduardo Escorel é uma forma de consciência da sua época.