Um dos pecados capitais que uma obra cinematográfica pode cometer ao abordar um tema complexo é a tentação da simplificação maniqueísta. O Insulto, filme libanês dirigido por Ziad Doueiri que entra em cartaz nesta quinta-feira (e concorre ao Oscar de Melhor Filme Estrangeiro, veja os demais competidores abaixo), consegue evitar esse tropeço mesmo escolhendo uma forma alegórica para tratar das tensões políticas no Líbano contemporâneo, simbolizadas numa discussão aparentemente banal.
Tony Hanna (Adel Karam) é um cristão de extrema-direita, admirador fervoroso do líder nacionalista Bashir Gemayel. Mecânico de automóveis, vive com a esposa grávida (Rita Hayek) em uma área populosa e degradada de Beirute, que está passando por reformas de infra-estrutura realizadas majoritariamente por operários palestinos – muitos deles refugiados ilegais, o que torna seus salários convidativos para a empresa que os contrata. Um dia, regando suas plantas, a água vaza pela calha com defeito e molha o mestre de obras Yasser Salameh (Kamel El Basha). Yasser vai até o apartamento, se oferece para consertar o cano e é repelido. Tenta fazer o conserto pelo lado de fora da sacada e Tony rebenta o cano novo com uma marreta. É aí que o capataz responde com o "insulto" que dá título ao filme.
Tony passa a exigir uma desculpa formal da empresa que contrata Yasser, que se recusa. Quando o capataz finalmente cede, é insultado por Tony e revida socando o mecânico, e o que era uma questiúncula urbana vai parar nos tribunais, com cada parte adotada pela opinião pública como símbolo de uma tensão política palpável.
Tony é logo adotado pela direita cristã como um resistente contra a "descaracterização da sociedade libanesa" provocada pelo amplo afluxo de refugiados palestinos. Yasser se torna um emblema da condição subalterna imposta aos palestinos muçulmanos no Líbano. Advogados de destaque se apresentam para defender a causa mais por seu teor político, a mídia logo arma seu circo habitual e daí para escaramuças de rua é um passo.
Ao definir o que seria o "pensamento complexo", Edgar Morin criticava um certo modelo de apreensão da realidade que tende a "isolar objetos ou fenômenos de seu ambiente". Nesse sentido, O Insulto é uma das produções mais complexas a estrear em Porto Alegre recentemente. Diretor dos premiados West Beirut (1998) e O Atentado (2012), Ziad Doueiri entretece com competência a altercação dos dois homens (que, à medida que prossegue o julgamento, se percebem mais parecidos do que pensavam) em um contexto cujas raízes mergulham no passado encharcado de sangue do país: os conflitos com Israel; o massacre de palestinos em Sabra e Chatila, cometido por cristãos maronitas; os avanços da OLP e de outras facções palestinas, resultando no massacre de aldeias inteiras – eventos que de um modo ou outro voltam à tona e estão conectados ao passado dos dois homens, exposto no tribunal.
A determinado ponto, tanto Tony quanto Yasser se veem, a contragosto, enredados em uma engrenagem que parece menos interessada na questão original e mais em rever as chagas do passado. E é aí que, mesmo imbuído de tantas qualidades, O Insulto peca. À medida que progride como um "drama de tribunal", o filme vai perdendo força até um final que parece deslocado. O que não anula a experiência e a própria chave de compreensão do filme: qualquer um pode fazer tanto a paz quanto a guerra.
OS DEMAIS INDICADOS A FILME ESTRANGEIRO
Produção chilena vencedora de três prêmios no Festival de Berlim 2017, entre eles o de melhor roteiro, é estrelado pela cantora lírica trans Daniela Vega. Daniela interpreta Marina, garçonete trans que, após a súbita morte do homem com quem se relacionava, passa a ser submetida a constrangimentos pela família do amante. Foi exibido em Porto Alegre em 2017.
Corpo e Alma
Colegas de trabalho em um matadouro, um homem (Géza Morcsányi) e uma mulher (Alexandra Borbély), ambos com limitações físicas e psicológicas e extremamente solitários, passam a compartilhar os mesmos sonhos. Produção húngara dirigida por Ildikó Enyedi (autora do ótimo O Meu Século XX). Está em cartaz na cidade.
Sem Amor
Casal em processo de divórcio já praticamente encaminhou a fase seguinte de sua vida, inclusive com novos parceiros. Assim, negligenciam o filho pequeno (Matvey Novikov), que um dia desaparece misteriosamente. Filme dirigido por Andrey Zvyagintsev, indicado ao Oscar por seu longa anterior, Leviatã (2013). Estreia nesta quinta-feira em Porto Alegre.
Filme que venceu a prestigiosa Palma de Ouro em Cannes e vem sendo apontado como o favorito a levar o Oscar. Curador de museu de arte contemporânea em Estocolmo (Claes Bang), passa por crise pessoal e profissional após ter seu celular furtado e aprovar uma campanha de marketing mal sucedida. Está em exibição em Porto Alegre.