A filósofa e escritora Lou Andreas-Salomé (1861—1937) viveu intensamente alguns dos períodos e encruzilhadas fundamentais do humanismo europeu no fim do século 19 e início do 20. Ensaísta e poeta, ela conviveu com o filósofo Friedrich Nietzsche (1844—1900), com o poeta Rainer Maria Rilke (1875—1926) e foi aluna do fundador da psicanálise, Sigmund Freud (1856—1939). Essa vida marcada por uma paixão insaciável pelo conhecimento é reconstituída no filme Lou, que estreou esta semana no Guion.
No longa, trabalho de estreia na ficção da diretora Cordula Kablitz-Post, após décadas assinando documentários para a TV alemã, Lou Andreas-Salomé é retratada em três períodos: a infância e juventude; a idade adulta, na qual é vivida por Katharina Lorenz; e a velhice, nos anos 1930, interpretada por Nicole Heesters em uma Alemanha ameaçada pela ascensão do nazismo.
Na idade madura, o centro da trama é a aproximação entre uma Lou já envelhecida e doente e um jovem pesquisador, Ernst Pfeiffer, que começa como assistente tomando notas para sua biografia e acaba por interferir cada vez mais no resultado da obra. Lou narra a Pfeiffer passagens de sua vida anterior, e o maior recorte da narrativa é dedicado à Lou entre os 20 e os 50 anos. É nessa fase que ela se aproxima das lutas pela emancipação feminina e conhece grandes nomes de seu tempo. Faz amizade com o filósofo Paul Rée (Philipp Hauss) e, por meio dele, se aproxima de Nietzsche (Alexander Scheer). Inicialmente contrária ao casamento, que tornava a mulher legalmente subordinada ao marido, aceita um matrimônio de fachada com o linguista Friedrich Carl Andreas (Merab Ninidze).
FILME CONVENCIONAL
Embora seja um filme de muitas cenas internas, Lou também se esforça para colocar sua protagonista na natureza: bosques, rios, jardins (um reflexo de sua paixão inicial pela filosofia de Spinoza, citada na cinebiografia). Lou nasceu em São Petersburgo, passou por Zurique, Roma, Leipzig e Berlim. Para driblar as óbvias dificuldades de orçamento impostas por um filme de época que precisa se deslocar pelo passado de tantos lugares diferentes, Cordula Kablitz-Post usa um recurso interessante: as transições entre momentos da vida da personagem são marcadas pela inserção, por efeitos digitais, de uma Lou em movimento nas cenas estáticas de cartões postais do período. É um artifício usado com graça, mas que também resume um dos problemas do filme: tratar de modo tradicional, pouco dinâmico e até mesmo antiquado uma das mulheres mais anticonvencionais de seu tempo.
Pioneira da psicanálise e mulher determinada a ser reconhecida por sua obra e seu intelecto, Lou Salomé é uma personagem de referência para muitas vertentes do feminismo, que criticam o modo como sua biografia é, de modo geral, apresentada: uma nota de rodapé na trajetória dos homens ilustres que a elegeram como musa. A Lou do filme, infelizmente, não tem melhor sorte. A ótima Katharina Lorenz é luminosa ao expressar a paixão de Lou pela vida e pelo conhecimento, mas essa ânsia é suplantada, mesmo em um filme dirigido por uma mulher, pelo interesse dos homens à sua volta. Seria um recorte preciso se o filme soubesse ser mais crítico a esse estado de coisas, mas ele mesmo se estrutura de modo a que a consumação da paixão pelo jovem Rilke (Julius Feldmeier), 15 anos mais novo, seja o clímax do filme, como se fosse um despertar pessoal da própria Lou. A personagem merecia mais.
UMA FIGURA LIBERTÁRIA
Nascida em uma abastada família russa com raízes germânicas e francesas, Lou Salomé era a única mulher entre quatro filhos, e por isso teve de travar batalhas domésticas para começar e continuar sua instrução em filosofia. Originalmente orientada por um pastor holandês, cursou universidade em Zurique, e, em viagens por toda a Europa, desenvolveu uma intensa vida literária e intelectual, ligada a movimentos de emancipação feminina. Publicou poesia, romances, peças teatrais, ensaios filosóficos. Com a virada do século 20, ela também se aproximou de Freud e, como sua aluna, foi uma das pioneiras da psicanálise, que exerceu quase até o fim da vida – em seus últimos anos, ela foi coagida a encerrar sua clínica com a ascensão do nazismo, que via na prática criada por Freud uma “ciência judaica”.