A conexão entre a menina de olhar perdido sentada na frente de casa e a jovem mulher que vaga desorientada por uma boate, onde transa com um desconhecido no banheiro, é de pronto estabelecida nas primeiras cenas de Una, filme em cartaz na Capital. A protagonista que dá nome ao longa do estreante Benedict Andrews – vivida por Ruby Stokes e, quando adulta, por Rooney Mara – parece ter no sexo um elemento de autoafirmação e também de transtorno, resultado da relação abusiva a que foi exposta aos 13 anos. É um trauma que sobrevive difuso e que ela decide confrontar 15 anos depois.
Adaptação da peça teatral Blackbird, escrita por David Harrower, Una ilumina um tema de abordagem sempre espinhosa a partir dos efeitos psicológicos que o episódio provocou na garota – e também no homem que a abusou, Ray (Ben Mendelsohn), vizinho e amigo de seu pai e com quem a jovem ensaiou uma breve e criminosa paixão proibida.
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A tensão erótica que aproximou Una e Ray remete ao referencial clássico literário Lolita, de Vladimir Nabokov. O jogo de sedução e o debate moral, porém, ficam em plano secundário. O motor dramático do filme está no acerto de contas que os personagens fazem no presente, revivendo o episódio que descarrilou suas vidas. Enquanto Ray supostamente se recompôs, após alguns anos na cadeia, a falta de maturidade emocional de Una a deixou com feridas abertas.
Ainda vivendo com sua mãe, Una descobre o local onde Ray trabalha, sob uma nova identidade, e decide procurá-lo com objetivos que não tem muito claros. Mais do que um ato de vingança latente ou uma reaproximação que pode reacender o desejo mútuo reprimido, agora sem travas para ser consumado, o encontro se mostra uma catártica purgação – para ambos.
A encenação reverente à matriz teatral – no texto original, a menina abusada tem 12 anos e o vizinho, 40 –, com os duelos verbais ora contidos, ora exasperados, emoldurados por escritórios e banheiros, faz Una adquirir uma aparência por vezes artificialmente solene, impostada. Se a postura dos personagens que Una desenha pode lançá-los a um julgamento moral sumário, ilustrativo da atual era dos extremos em que rareia a zona cinzenta entre o preto e o branco, não é irrelevante seu alerta aos relacionamentos abusivos e criminosos que estão por toda a volta, transcorrendo sob as mais diferentes formas. Que sejam cada vez mais expostos e denunciados em filmes, novelas, programas de TV ou qualquer outro canal que dê visibilidade ao drama.
UNA
De Benedict Andrews
Drama, Reino Unido/EUA/Canadá, 2016, 94min.
Em cartaz nos cinemas.