Dois longas latino-americanos que têm em comum a valorização dos traços culturais indígenas do continente e a estrada como cenário elevaram na noite de terça-feira a competição da categoria no 44º Festival de Cinema de Gramado. Coprodução entre Bolívia, México, Venezuela e França, Carga sellada (2015) acompanha a odisseia de um trem com carga tóxica pelo altiplano boliviano conduzido por policiais enfrentando a resistência das comunidades nativas, contrárias a que o comboio passe por suas terras; já o paraguaio-argentino Guaraní (2016) narra a viagem de um avô que só fala guarani e sua neta, desde o Paraguai profundo até Buenos Aires, em busca da mãe da garota.
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Remotamente inspirado em um evento ocorrido na Bolívia em 1995, Carga sellada mostra um major da polícia (vivido pelo ator mexicano Gustavo Sánchez Parra) à frente de uma tropa de três soldados, com a missão de levar um misterioso carregamento pelo árido deserto do país a bordo de uma maria-fumaça conduzida por um veterano maquinista. A presença de uma clandestina, a jovem indígena Tania (Daniela Lema), e os enfrentamentos com os habitantes dos povoados à beira da estrada de ferro escancaram as desigualdades sociais, os preconceitos étnicos e o descaso das autoridades bolivianas.
– Tivemos que ter muito respeito pela comunidade onde 80% do filme foi rodado. Seguimos as regras deles, que são muito fortes. A estreia mundial foi nessa comunidade, que deve ter menos de 5 mil habitantes. Eu tinha que ter muito cuidado: sou alto, branco, boliviano e estava fardado de policial. Ficamos oito semanas no altiplano, e vi que é muito difícil viver ali – contou em entrevista coletiva na manhã de quarta-feira Fernando Arze, ator boliviano que veio com 10 anos para o Brasil, onde participou de filmes como Primeiro dia de um ano qualquer (2012), de Domingos de Oliveira.
Em Guaraní, o velho pescador Atilio (Emilio Barreto) vive com suas filhas e netas à beira do rio Paraná, no Paraguai. Ao descobrir que a filha que mora em Buenos Aires está grávida de um menino, ele decide percorrer os 1,3 mil quilômetros até a capital argentina, acompanhado da neta Iara (Jazmin Bogarin), a fim de trazer Helena de volta – o orgulhoso Atilio quer que o primeiro varão de sua descendência nasça em terras paraguaias e dê seguimento à cultura guarani. Iara e Helena, por outro lado, encarnam o irrefreável movimento rumo à modernidade e a curiosidade por novos horizontes.
– O tema tem a ver com a motivação do avô e com a história do Paraguai, quando houve uma matança durante a guerra da Tríplice Aliança (de 1864 a 1870) e só restaram 30% de homens vivos no país. Como se dá continuidade a essa nação? Por meio das mulheres, da língua, das raízes – comentou na coletiva o diretor argentino Luis Zorraquin a respeito de seu humanista e positivo longa de estreia, em que se destaca a perfeita sintonia de atuações entre o ótimo Emilio Barreto, de 76 anos, e a encantadora Jazmin Bogarin, de 13.