A partir desta terça-feira, quem entrar no Santander Cultural será recepcionado pelos azuis, verdes e vermelhos da pintura Sempre (2016, imagem abaixo), que envolve o visitante com seus 2m de altura por 3m54cm de largura. Instalada no acesso ao saguão do edifício, ela anuncia a exposição Nem Eu, nem Tu: Nós – A Obra de Karin Lambrecht e o Olhar do Colecionador. Ao ultrapassá-la, o visitante se encontrará com outros 102 trabalhos. São pinturas abstratas, na maioria, mas há também três instalações, desenhos e documentos. É a maior individual da artista gaúcha, expoente da chamada geração 80, que colocou a pintura em evidência no país, e também é conhecida por usar sangue de carneiro em algumas obras.
O empresário, colecionador e atual diretor-presidente da Fundação Iberê Camargo Justo Werlang olha para a mostra e se sente em casa. Muitas das obras expostas estão guardadas na sua residência, na Capital. Lá, ficam dispostas da mesma forma como estão no Santander: espalhadas em alturas diferentes pelas paredes do centro cultural porto-alegrense.
– Casa de colecionador é assim. Trabalhos lá em cima, um em cima do outro. É como se alguém tivesse espichado a minha casa para cá – descreve Werlang.
As peças são uma parte de sua coleção, que possui mais de 150 trabalhos assinados por Karin. Talvez 70%, nos cálculos do artista e curador da mostra, André Venzon, que elegeu a relação entre o colecionador e a artista como o foco da exposição. Venzon quer revelar a "personalidade" incomum da coleção de Werlang, que acumula muitas obras de apenas oito artistas para poder aprofundar-se na produção de cada um deles. Karin foi o último nome a ingressar nesse seleto grupo, que ainda é formado por Iberê Camargo, Xico Stockinger, Siron Franco, Nelson Felix, Daniel Senise, Mauro Fuke e Felix Bressan.
– Trata-se da coleção de arte contemporânea mais importante do Rio Grande do Sul – avalia Venzon. – A gente não tem instituições públicas capazes de oferecer esse mergulho no trabalho de uma artista assim – acrescenta o curador, que dirigiu o Museu de Arte Contemporânea do Rio Grande do Sul (MACRS) entre 2011 e 2014.
A mostra marca a estreia da nova fase do projeto RS Contemporâneo. Desde 2012, o programa do Santander Cultural promoveu 18 exposições de jovens artistas gaúchos. Em 2017, com o subtítulo Pensamentos Curatoriais, voltou-se à figura do curador.
Venzon afirma que a curadoria foi compartilhada com o colecionador, que nunca havia exposto sua coleção com esta magnitude.
– Uma coleção ampla oferece condições de perceber o vocabulário do artista, de entrar no seu pensamento e na própria gênese da obra – explica Werlang.
Buscando aprofundar-se no universo de Karin, o colecionador reuniu trabalhos que representam toda a sua trajetória, desde os anos 1970. Também adquiriu documentos, dos quais cerca de 80 estão na mostra. São anotações, estudos e aquarelas. Tudo joga luz sobre o processo de criação da artista.
As obras mais recentes mostram como Karin, aos 60 anos, continua produzindo muito. São pinturas planas, porém com várias camadas de pigmento que tornam as cores vibrantes e luminosas. Os quadros mais antigos incorporam materiais orgânicos, como Terra Queimada (1989), que combina pigmento, terra, recortes de ferro e folhas de árvore. São referências à Arte Povera e a Joseph Beuys. Cada material tem sua carga simbólica e, somado a elementos como cruzes e palavras, onipresentes nas obras, levantam reflexões sobre morte, religiosidade e a relação entre o corpo e espírito. Algumas telas são queimadas, cortadas ou deixadas ao relento.
O uso de sangue animal, entre 1997 e 2008, deu grande repercussão à artista, especialmente após a 25ª Bienal de São Paulo, em 2002, quando expôs Eu e Você (2001). O trabalho traz quatro vestidos brancos de algodão, três deles com manchas de sangue de carneiros abatidos, além de imagens de cruzes com vísceras. Como ressalta o crítico Cauê Alves no catálogo da mostra, o sangue "não é tratado como tinta", mas como índice do corpo. Além dessa instalação, estão presentes outras duas marcadas pelo uso do sangue de ovinos, Pai (2008) e Morte: Eu Sou Teu (1997) – esta com o sangue da própria artista.
– Não pinto com pincel; uso a mão. Então muitas vezes me cortava sem querer e acabava usando o meu sangue também – explica Karin, com naturalidade.
Morte: Eu Sou Teu (1997) foi o primeiro trabalho em que Karin usou sangue e tem como suporte uma toalha de mesa de sua avó. Foi também a primeira obra dela adquirida por Werlang, em 2002. Conforme Alves, o título "propõe o desapego de um 'eu' específico e possibilita a visão do todo, do entorno, do outro e do mundo".
Antes da sua mostra anterior na Capital, Pintura e Desenho (no Instituto Ling, em 2015), Karin ficou 13 anos sem expor na cidade. Ao vislumbrar a nova mostra, a artista se surpreendeu:
– Quando olhei para tudo, pensei: "Puxa, tem uma coerência". Considero essa a minha primeira individual monográfica de verdade, que teve um estudo por trás.
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