Nas décadas de 1940 e 1950, a maior parte dos músicos de Porto Alegre trabalhava na Rua Voluntários da Pátria. Uma sucessão de inferninhos se enfileirava desde o Mercado Público, na área central, até a Boate da Mãezinha, já à beira da zona norte da Capital. No percurso, luziam placas de neon com nomes de cabarés como Castelo Rosado, Tropical, Mocambo, Balalaica e Saint Claire, mas nenhuma brilhava mais do que a da American Boate. Abrigada em um casarão com chafariz nos jardins, ela tinha uma clientela formada especialmente por fazendeiros endinheirados — ou por gente que se fazia passar por tal. Lá pelas tantas da noite, a brincadeira dos boêmios era tirar os sapatos e caminhar, trôpegos, mas sem escorregar, pelas bordas cheias de limo do chafariz.
De boa ou má reputação — já que muitas delas eram uma combinação de cabarés e casas de shows —, as boates da Rua do Pecado (como ficou conhecida) contratavam conjuntos de samba, choro e seresta, além de orquestras de tango (gênero musical que vivia o auge da popularidade). Naquele tempo, aviões como o Caravelle (um dos primeiros jatos comerciais de curto e médio curso), que não tinham autonomia de combustível para voar sem escala de Buenos Aires a São Paulo, desciam no meio do caminho para reabastecer em Porto Alegre. Se o embarque fosse no dia seguinte, os músicos aproveitavam para ganhar um dinheirinho a mais por aqui.
Com eles, vinham também dançarinas. Em anúncio publicado nos jornais, em 1957, por exemplo, a American Boate divulgou o show da orquestra Suspiros de Espanha, acompanhada de Poupe Dorée (apresentada como "bailarina internacional clássica"), Muneca Martins ("cantora melódica tropical") e Lina Mayer ("vedete frívola").
— Eram argentinas, uruguaias e até francesas chiques — comentou o saxofonista Juvêncio Rodrigues de Paula, o Sabiá, também chamado de Pássaro Preto da Noite.
No final da Voluntários da Pátria, ficava a boate da Mãezinha, para onde acorria boa parte dos músicos ao longo da noite. É que, de meia em meia hora, orquestras e conjuntos melódicos se revezavam no palco das casas noturnas.
— Entre uma apresentação e outra, a gente pegava o bonde para ir até a Mãezinha. Lá, subia a escada correndo e dançava um pouquinho. Músico não pagava mesmo... Ah, como era bom — contou Valter de Oliveira, o Valtinho do Pandeiro.
Como muitos profissionais da música, ele tinha um emprego diurno para completar o orçamento doméstico — trabalhava como auxiliar administrativo do Departamento Autônomo de Estradas de Rodagem (Daer) do Estado.
— Ainda bem que o diretor da seção também gostava da noite e, além do mais, era meu amigo. Depois do almoço, deixava eu tirar um ronco no gabinete dele — contou Valtinho, que faleceu em 2016.
A Rua do Pecado não passou incólume por fatos históricos, que marcaram a vida política do país. Um deles foi o suicídio de Getúlio Vargas, em 24 de agosto de 1954, que causou quebra-quebra em várias cidades do país. Em Porto Alegre, não foi diferente. A rádio Farroupilha virou alvo da ira da população, por pertencer, à época, aos Diários Associados, do empresário Assis Chateaubriand, inimigo político do presidente que acabara de dar cabo à vida com um tiro no coração.
Não satisfeita em atear fogo nos estúdios da emissora, a multidão atacou o consulado dos Estados Unidos e também estabelecimentos comerciais cujo nome fazia referência àquele país, como as Lojas Americanas e a Importadora Americana. Por uma questão semântica, sobrou até mesmo para a American Boate.
— Além de depredar a boate, jogaram os instrumentos dos músicos na calçada — contou o bandoneonista Rafael Koller (falecido em 2019), que assistiu àquelas cenas de fúria popular da janela do cabaré ao lado. — Quando vi, eram violões voando para tudo que é lado. A classe musical nada tinha a ver com a morte de Getúlio, mas pagou o pato.