
O texto a seguir é uma colaboração do escritor e historiador João Paulo da Fontoura, membro da Academia Literária do Vale do Taquari (Alivat).
Há alguns anos uma amiga minha, a Sabrina, que é secretária da Cultura de Taquari, preparando material para o Natal Açoriano, pediu-me que lhe enviasse um texto sobre a origem desse pertencente orgulho de 99 a cada 100 moradores desta terra do “sigam nossas façanhas”. Rapidamente, expliquei-lhe. Não gostou; então pediu para alguém do CTG local fazer com um tom menos realista e mais ufanista.
Estou relendo Viagem ao Rio Grande do Sul, o clássico do botânico, naturalista e viajante francês Auguste de Saint-Hilaire (1779-1853), que andou viajando e coletando ervas, insetos, pássaros, da Bahia até o Uruguai (à época, província brasileira) de 1816 a 1822. Mas vou focar minha visão sobre essa obra na parte que nos toca neste latifúndio de palavras: a descrição da viagem às, então, províncias de São Pedro do Rio Grande e do Uruguai.

Antes um pequeno destaque a um grande brasileiro, nascido aqui em Taquari: a tradução do livro de quase 500 páginas, editado pela Martins Livreiro, em 1987, é de Adroaldo Mesquita da Costa. O livro, que podemos considerar uma monografia, inicia-se pela entrada em nossa província, numa segunda-feira, 4 de junho de 1820, pela praia do povoado de Torres. É todo dividido em capítulos (quase 30), a partir dos registros que o autor anotava quase que diariamente em seus cadernos.
A caravana era composta por uma carroça puxada a bois, alguns muares e ajudantes que colhiam material de pesquisa e ajudavam nas dificuldades de transitar por locais sem estradas, pontes, com atoleiros, matas fechadas, etc. A viagem toda dura exatos 12 meses, de junho a junho, e o legal é que ele vai descrevendo os locais por onde passa (Porto Alegre, Pelotas, Rio Grande, Montevidéu, Colônia de Sacramento, as Missões Jesuíticas e, depois, imbica para Rio Pardo – onde vende a carroça e embarca, via Rio Jacuí, para Porto Alegre). Além disso, reconheço com uma certa dose de misantropia, a fauna humana que encontra pelo caminho: autoridades civis, militares, índios, negros, estancieiros.
Dos vários temas, assuntos e curiosidades registrados no livro, vou citar apenas dois – até para que esse meu texto não vire um livro. Um dos conteúdos, o principal, fala sobre a origem do termo “gaúcho”.
1) Quando o naturalista francês chega à vila de Rio Pardo – aliás, muito bem descrita sua topografia, arquitetura –, ele registra um desapontamento com o Brasil com uma anotação simples e curta: “600 léguas sem uma só ponte”. Uma légua portuguesa media 6.173 metros. Então ele fala de 3.704 quilômetros;
2) Vejamos como o escritor registrou a definição do termo “gaúcho” – que ele usa constantemente no livro. “(...) estes homens sem religião e sem moral, a maior parte índios ou mestiços, que os portugueses designavam sob o nome de ‘garuchos’ ou gaúchos (...)”.
Em realidade, eram indivíduos do mais baixo substrato social, quase párias nesta sociedade humana que se formava há pouco tempo – não nos esqueçamos que o nosso Estado é de formação tardia, por volta de 1750–, gente que vivia em cima de um cavalo, comia basicamente carne dada ou roubada, e quando fazia um pequeno trabalho, recebia a paga e trocava por cachaça nas pulperias locais.
No Uruguai, havia um líder mestiço, conhecido por coronel Siti, que havia lutado ao lado de Artigas na recém finda guerra contra os portugueses, e que mudava de um lado para outro, cujo exército de índios é composto por gaúchos, segundo Saint-Hilaire.
Eu já li umas 50 origens para esse termo; a que mais, a meu ver, aproxima-se da verdade é a que diz ter origem quéchua (índios peruanos). Seria algo como “filho de índia com estrangeiro” (português, espanhol). Só lá pelo final do século 19 é que “gaúcho” começa a ser usado como um gentílico.
Em meus devaneios, sonhava para que esse termo tivesse origem francesa, “gauche”, à esquerda, no sentido de livre (diferente, incompatível, deslocado). Sabemos não ser, mas seria muito belo; como nos versos do genial Carlos Drummond de Andrade: “Vai, Carlos! Ser gauche na vida”.