A primeira boate assumidamente voltada para o público homossexual de Porto Alegre (e uma das pioneiras no Brasil) abriu as portas em 8 de maio de 1971. Ficava na Praça Jaime Telles, no bairro Partenon. O nome: Flower’s, com o orgulhoso slogan “A Glória do Gênero”. O pioneirismo foi registrado pela Divisão de Censura de Diversões Públicas (órgão de censura oficial do regime militar), subordinada à Polícia Federal, que definiu a danceteria como “boate gay” na licença de funcionamento.
— É melhor sabermos onde vocês estão e o que fazem. Assim, não perdemos o controle — explicou o delegado responsável pela concessão da licença ao fundador da Flower’s, o jornalista Dirnei Messias.
Um mês antes da inauguração, Messias havia convidado “as quatro bichas mais famosas de Porto Alegre” (segundo suas palavras) para um jantar em sua casa. Entre os presentes, estava Tatata Pimentel, como era conhecido o professor de francês e inglês Roberto Valfredo Bicca. Intelectual extremamente culto, Tatata era também muito comunicativo, tanto que ganhara visibilidade como jurado do programa Puxa, É a Gaúcha, de Hélio Wolfrid, apresentado aos domingos na TV Gaúcha (atual RBS TV). Recolhidos os pratos, o anfitrião anunciou a ideia de abrir a boate, mas pediu que ninguém passasse a notícia adiante — afinal, faltava acertar detalhes do contrato de locação com o proprietário do imóvel.
— Na manhã seguinte, toda a cidade sabia da novidade, principalmente o mundo gay — diz Messias, que não ficou nem um pouco aborrecido com os amigos que deram com a língua nos dentes (como jogada de marketing, foi perfeito).
Durante quatro anos, a Flower’s reinou na noite de Porto Alegre com um corpo de dançarinos de 18 travestis, que participava de espetáculos baseados em sucessos de Hollywood ou da Broadway, como Cabaret e Sansão e Dalila. Nas noites mais agitadas, 400 pessoas se aglomeravam lá dentro, enquanto uma centena aguardava na calçada. Entre os habitués (que não abrangiam apenas homossexuais), estavam colunistas sociais como Gilda Marinho e Roberto Gigante, que faziam as boas-vindas aos visitantes de fora do Estado, a exemplo dos cantores Cauby Peixoto, Agnaldo Rayol, Emílio Santiago e Maysa, o humorista Carlos Leite e a atriz transformista Rogéria.
Até a banda nova-iorquina Village People, responsável por hits clássicos do público gay, como Macho Man, aproveitou uma turnê pela Capital para conhecer a Flower’s. Conforme Messias, o rol de frequentadores incluía alguns políticos e até um ministro do governo da ditadura militar, cuja identidade não ousa declinar.
— Em respeito à família, só revelarei o nome depois que ele morrer.
Volta e meia, a Flower’s era alvo de batidas policiais. Certa noite, Messias e parte da clientela foram levados em camburões para depoimentos no Palácio da Polícia, alguns quarteirões longe dali. Já a poucos metros da danceteria assentava-se um quartel do Exército. Em 1975, após constantes atritos com os militares, Messias resolveu trocar de endereço.
— Exigiam que diminuísse em 60% o volume da música. Preferi ir embora — relembra.
Abriu nova casa noturna, na Avenida Independência, a New Flower’s City, que durou outros quatro anos. Messias ainda comandaria as boates Papagaio’s e Pantheon, antes de se reinventar como promotor de concursos de beleza masculina, tais como Garoto Verão, Mister Beleza das Américas e Mister Universo. Nada que se compare a era de ouro da Flower’s, que tanto ajudou a arejar os ares provincianos da Capital há meio século.
— Quando um delegado quis saber o segredo do sucesso da Flower’s, se era droga, sexo, isso ou aquilo, eu respondi que era exclusivamente bichice, ou seja, a pura alegria que está na própria origem da palavra gay — conclui Messias.