Há quase 40 anos, a música ao vivo executada de forma espontânea por artistas profissionais em suas horas de lazer tem lugar cativo na noite da Capital: os bares do Marinho.
O primeiro foi o Gota D’Água, aberto no início de 1982 na Rua da República (onde hoje está localizado o Porto Carioca), na Cidade Baixa. Depois disso, Celmar Rodrigues, 68 anos, o Marinho — apelido que se deve à superstição de só vestir trajes da cor azul-marinho, reforçada pela paixão pelo Grêmio — jamais abandonou o bairro boêmio. Natural de Santana do Livramento e radicado em Porto Alegre desde 1967, administrou casas como a Estância de São Pedro, na João Alfredo, antes de assumir a marca Bar do Marinho, primeiro no minúsculo e aconchegante boteco que comandou na esquina da Lima e Silva com a Leão XIII, depois no atual endereço, na Sarmento Leite, para onde se mudou em 2011.
No Gota D’Água, o passaporte dos músicos para a tomada do território veio pelas mãos de um cunhado de Marinho, que, na época, era colega do acordeonista Élio da Rosa Xavier, o Porca Veia, na Escola Técnica de Agricultura (ETA) da UFRGS. Junto a Porca Veia, chegaram Neto Fagundes, Elton Saldanha, João de Almeida Neto, entre outros. A turma frequentava o CTG 35 até certa altura da noite, quando se mudava da gaita e cuia para o Gota D’Água.
— Foi o primeiro bar de Porto Alegre que abriu as portas para o nativismo — orgulha-se Marinho.
Ele conta que Borghettinho assinou seu primeiro contrato profissional no Gota D’Água. Quem o contratou foi o economista Pratini de Moraes, que, além de ter sido ministro da Agricultura e das Minas e Energia, ficou conhecido entre os amigos como um acordeonista de mão cheia. Consta que, ao escutar Borghettinho no barzinho da República, Pratini de Moraes se entusiasmou a ponto de ir buscar o próprio acordeão no porta-malas do carro para acompanhá-lo. Ato contínuo, contratou ali mesmo o rapaz para a festa de aniversário de 50 anos de casamento de seus pais.
Com o tempo, Marinho — que não sabe tocar nenhum instrumento — cedeu espaço para todas as correntes musicais, e o violão, apelidado de Remendão, passou a circular livremente por entre as mesas. A amizade rendeu homenagens de Sérgio Rojas, Elton Saldanha, Caetano Silveira e Fausto Prado, além de Zé Caradípia, que compôs Lua da República na mesa do Gota D’Água, em abril de 1984. “Cerveja no balcão/E o som fluindo/De um remendado violão”, diz a letra da canção.
— Conheci minha mulher, Rosane, no Gota D’Água. Ela estava ao meu lado quando compus Lua da República e continuamos juntos até hoje — emociona-se Caradípia, que tinha virado sucesso nacional com Asa Morena, na voz de Zizi Possi, em 1982.
Além de artistas locais, deram canjas no Marinho nomes como Monarco e Guaracy 7 Cordas, da Velha Guarda da Portela, Bi Ribeiro e João Barone, do Paralamas do Sucesso, além de Belchior e Luiz Melodia. Sem falar em Mark Johnson e Whitney Kroenke, da banda Playing for Change. Marinho diz criar ambientes para que os músicos toquem por prazer, não por obrigação, e se arrepende de não ter documentado em fotos ou vídeos as jam sessions que atravessaram as madrugadas.
— Lá, o violão é como se fosse um chimarrão: passa de mão em mão, e as canções surgem espontaneamente. A música não está ali pelo negócio, mas porque as pessoas simplesmente fazem questão de que ela esteja ali, por incentivo do Marinho — sintetizou, certa vez, Nelson Coelho de Castro.