Um dos motivos dos embates atuais entre o presidente Jair Bolsonaro e o ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, a hidroxicloroquina não é o primeiro composto químico a colocá-los em rota de colisão. Bolsonaro defende o uso do medicamento desde os primeiros dias de identificação do coronavírus no paciente, acena com ideias de produção em massa e indica que pode ser uma suposta "cura" para a peste. Mandetta é cauteloso, diz que a cloroquina já está sendo usada para casos graves de covid-19, junto de outras drogas, mas sempre ressalta que não há estudo científico que comprove sua eficácia no tratamento da doença. Bolsonaro elevou o remédio à condição de salvação. Mandetta alerta que ainda não é possível fazer afirmações, avisa sobre efeitos colaterais e finca pé na necessidade de isolamento social.
Bolsonaro e Mandetta também estiveram em lados opostos por conta de um pretenso medicamento em 8 de março de 2016. Naqueles dias, só se falava no impeachment de Dilma Rousseff em Brasília, as votações estavam obstruídas e absolutamente nada era analisado em plenário. Um grupo pluripartidário de parlamentares conseguiu, a partir de um grande acordo, abrir uma exceção para a análise do projeto de lei que autorizava a produção, importação, distribuição e prescrição da fosfoetanolamina, popularmente conhecida como a "pílula do câncer".
Não havia comprovação científica de que a fosfoetanolamina combatia com eficiência o câncer, médicos alertavam para o risco de um engodo e a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) jamais havia feito as testagens clínicas e o registro para o composto. Mesmo assim, o movimento de pessoas acometidas pela doença e seus familiares, desejosos por uma fagulha de esperança, se transformou em uma onda favorável. Um grupo de 26 deputados federais subscreveu o projeto de lei para liberar a fosfo, o entendimento foi costurado para levar a matéria a plenário no dia 8 de março, e todas as etapas para a aprovação de uma proposta foram feitas em um só dia. Um recorde.
Entre os principais defensores da fosfo estava o então deputado federal Jair Bolsonaro. Ele subscreveu o projeto de lei, articulou pela célere aprovação e foi ao microfone apelar aos seus pares pela pílula do câncer.
O câncer não tem partido O partido do câncer é o cemitério. Tem gente desesperada nos vendo agora. Eu duvido que alguém aqui não tenha um parente, um amigo acometido desse mal. Nós podemos agora dar uma esperança a essas pessoas. (...) Pior do que uma decisão mal tomada é uma indecisão
JAIR BOLSONARO
então deputado federal pelo PP-RJ
Em 3 de março de 2016, cinco dias antes da votação, Bolsonaro era um dos pregadores do acordo.
"Viemos a conseguir a urgência para a terça-feira e, quem sabe, na própria terça-feira consigamos votar um projeto de lei para liberar a fosfoetanolamina, independentemente de qualquer parecer da Anvisa. Nós não queremos driblar a Anvisa, mas esta não pode continuar impedindo que aqueles que queiram lutar pela vida façam uso desse medicamento", discursou Bolsonaro, conforme os registros históricos da Câmara.
A articulação política foi eficaz, contou com a habilidade de diversos parlamentares, entre eles Arlindo Chinaglia (PT-SP). Cinco dias depois do apelo de Bolsonaro, o projeto estava na pauta, após furar a obstrução causada pelo impeachment, e o então deputado do PP do Rio de Janeiro voltou ao microfone para defender a pílula do câncer. Ele estava preocupado em garantir o quórum para a votação e em debelar dúvidas de colegas que estavam com um pé atrás diante da hipótese de aprovar uma suposta cura que não havia sido testada nem comprovada.
"O câncer não tem partido. O partido do câncer é o cemitério. Tem gente desesperada nos vendo agora. Eu duvido que alguém aqui não tenha um parente, um amigo acometido desse mal. Nós podemos agora dar uma esperança a essa pessoas. Quero ainda dizer que, como comandante que cada um é aqui, pior do que uma decisão mal tomada é uma indecisão", discursou Bolsonaro.
A sessão era presidida por Eduardo Cunha (MDB-RJ), que anunciou o deputado que subiria à tribuna para "falar contra a matéria": Luiz Henrique Mandetta (DEM-MS). No corredor de baixa iluminação que circunda o plenário da Câmara, representantes de laboratórios assistiam atentos e abordavam jornalistas e parlamentares para assegurar aos descrentes que a pílula do câncer tinha resultados eficientes contra a nefasta doença.
Não se pode liberar uma substância sem saber o seu efeito colateral. Não se pode liberar uma substância sem saber qual é a dosagem para uma criança, para uma pessoa idosa, para uma mulher. Não se pode liberar uma substância sem saber para qual tipo de câncer ela eventualmente estaria indicada. (...) Politizar a cura do câncer me parece extremamente de mau gosto
LUIZ HENRIQUE MANDETTA
então deputado federal pelo DEM-MS
Mandetta começou: "A maneira como se encaminha esse tema é extremamente perigosa de se fazer ciência. Nós estamos reduzindo este debate a quem é a favor de curar o câncer e a quem é contra. Já se apropriam da quebra da patente para fazer o preço na coisa pública, mas se esquecem de que a ciência é feita de pesquisa, de que os resultados têm que ser submetidos à Comissão Nacional de Ética em Pesquisa. Não se pode liberar uma substância sem saber o seu efeito colateral. Não se pode liberar uma substância sem saber qual é a dosagem para uma criança, para uma pessoa idosa, para uma mulher. Não se pode liberar uma substância sem saber para qual tipo de câncer ela eventualmente estaria indicada", alertou Mandetta, conforme indica o registro do Diário da Câmara dos Deputados daquela sessão.
Ele finalizou sua manifestação: "Votem de acordo com as suas consciências. Mas eu tive que vir aqui para deixar claro que essa não é a maneira correta de se fazer pesquisa, nem liberação, nem registro de substância para uma doença tão grave. E politizar a cura do câncer me parece extremamente de mau gosto".
Eduardo Bolsonaro, à época já deputado pelo PSC de São Paulo, estava inscrito para discursar logo depois de Mandetta. Terceiro filho de Jair, Eduardo também foi um dos signatários do projeto de lei para liberar a fosfo. Para ele, uma pessoa com câncer poderia tomar até "água de bateria na veia", caso alguém assegurasse que significaria uma cura. Eduardo, contudo, afirmou que a fosfo era "muito melhor" do que água de bateria.
Senhores, a questão é simples: essas pessoas vão morrer daqui a uma semana, daqui a um mês. Se você ou algum familiar estivesse com câncer e alguém dissesse que água de bateria na veia cura, todo mundo tomaria. Agora, a fosfoetanolamina é muito melhor do que isso. Há o relato de pessoas que tomaram apenas essa pílula e melhoram, tiveram uma sobrevida
EDUARDO BOLSONARO
então deputado federal pelo PSC-SP
"Senhores, a questão é simples: essas pessoas vão morrer daqui a uma semana, daqui a um mês. Se você ou algum familiar estivesse com câncer e alguém dissesse que água de bateria na veia cura, todo mundo tomaria. Agora, a fosfoetanolamina é muito melhor do que isso. Há o relato de pessoas que tomaram apenas essa pílula e melhoram, tiveram uma sobrevida", disse Eduardo.
O parlamentar avaliou que as questões levantadas por Mandetta, como as dosagens certas para cada perfil de paciente, poderiam ser vistas no futuro.
"A discussão a respeito de patente, lucro, com certeza é para depois, até porque as pesquisas com relação a essa pílula seguirão, e a Anvisa, se Deus quiser, vai se sentir até pressionada para dar um andamento mais rápido à regulamentação dessa pílula. Aí, sim, nós teremos a dosagem certa para crianças, a dosagem certa para adultos, e saberemos se há alguma contraindicação na gravidez, e assim por diante".
A pílula do câncer acabou aprovada na Câmara e também no Senado rapidamente. A lei foi sancionada pela então presidente Dilma Rousseff em 14 de abril de 2016, semanas antes de ela ser afastada do cargo pelo avanço do processo de impeachment. Pouco depois, a legislação da fosfo foi suspensa por medida cautelar concedida pelo Supremo Tribunal Federal (STF), a pedido da Associação Médica Brasileira. O argumento era de que a proposta era inconstitucional por não observar, entre outras normas, a necessidade de registro da substância na Anvisa.
Em esclarecimento enviado à reportagem, a assessoria de imprensa da Anvisa informou que a situação da chamada pílula do câncer segue pendente: "Não houve mudança na situação da fosfoetanolamina. Esta substância não possui comprovações de eficácia e segurança para nenhum tipo de tratamento de saúde. Não há estudos clínicos apresentados para a Anvisa que indiquem o uso deste produto como medicamento para qualquer situação, muito menos para 'câncer'".
* Fonte: registros históricos do Diário da Câmara dos Deputados, sessão do dia 8 de março de 2016