Esta é uma história de amor, de vida em alto-mar e comida. Nossa heroína atípica é Norma Beazley, com certeza pouco romântica e nem um pingo sentimental em relação a quase tudo, mas que se derrete toda ao falar do marido, Herbert, um herói também pouco ortodoxo.
- Nos padrões de hoje ele seria um verdadeiro alucinado, mas para mim, era o homem mais inteligente do mundo - diz.
Aos 79 anos, ela conta que, graças à motivação do marido, ocupou cargos de gerência na Gulf Oil e Elf Aquitaine em uma época em que só os homens chegavam lá. Herbert Beazley, advogado, morreu em 2001, mas suas roupas continuam penduradas no closet que dividia com a mulher.
Também intocados desde sua morte permanecem os cinco armários laterais lotados de centenas de cardápios antigos de transatlânticos que ele trouxe para ela durante os 30 anos de casamento. Com exemplares que datam do fim do século 14 e registram mais de um século da alta gastronomia de bordo, a coleção é provavelmente a maior (e talvez a única) do tipo no mundo.
- Não conheço mais ninguém que colecione cardápios. Ele tinha o olho bom e gastou um bom dinheiro aqui comigo - afirma Richard Faber, antiquário e avaliador famoso de objetos marítimos antigos de Nova York que vendeu várias peças a Herbert Beazley.
Além da mulher, Herbert Beazley adorava objetos náuticos. Colecionava praticamente tudo o que existia a bordo: listas de passageiros, plantas de convés, pôsteres publicitários, cinzeiros, guardanapos, copos, pratos, flâmulas, vigias... Um tesouro de 19 mil peças que Norma Beazley doou, em 2011, ao Mariners' Museum de Newport News, na Virgínia.
Os cardápios representam um passeio fascinante pela história culinária. O único navio de passageiros grande que não está representado ali é o Titanic. Por motivos óbvios, os cardápios dos transatlântico são raríssimos. Um deles foi vendido em um leilão, em 2012, por mais de US$102 mil.
Durante a época de ouro dos cruzeiros - que foi de 1910 a 1960 -, as opções gastronômicas dos passageiros da primeira classe eram impressionantes. Em navios maiores, como o Normandie e o Mauretania, os jantares tinham 12 pratos, com 8 a 10 opções para cada um.
- Não se pode esquecer de que as refeições eram o ponto alto do dia no meio do oceano - diz Norma, que fez 15 cruzeiros com o marido, inclusive no Queen Elizabeth 2 e no Achille Lauro, que foi sequestrado em 1985 e pegou fogo e naufragou em 1994.
Volta do requinte
Até a década de 1970, os passageiros se vestiam formalmente para o jantar de todas as noites. Com lugares marcados, eles dividiam a mesa com o mesmo grupo durante todo o percurso. Muitas amizades nasciam assim, e era comum pedir aos companheiros de viagem que assinassem o cardápio no jantar de despedida.
- A gente conhecia gente interessante que viajava para todo canto, fazia coisas diferentes - diz Theodore Scull, historiador que dá aulas sobre o Queen Mary 2 em um curso de História Marítima.
Hoje em dia, os passageiros comem à hora que quiserem, vestidos como quiserem, com quem quiserem.
No Normandie, que navegou de 1935 a 1942, gente como Ernest Hemingway e Marlene Dietrich podia ser vista descendo a escadaria curva que dava para o salão de jantar - mais largo que um campo de futebol, com um pé-direito de 7m6cm de altura e paredes de vidro esculpido. Parecia o cenário da festa em O Grande Gatsby, só que flutuante.
- Toda noite parecia um show. Tudo era puro luxo - conta Sirio Maccioni, que usou o que aprendeu trabalhando como garçom do SS Atlantic, nos anos 1950, para criar o Le Cirque em Nova York.
De uns anos para cá, os navios vêm tentando dar um toque a mais de requinte às refeições. Chefs famosos como Jacques Pépin, Nobuyuki Matsuhisa e Marco Pierre White prestaram consultoria para Oceania, Crystal e P&O Cruises, respectivamente, para criar restaurantes a bordo. Sob o comando de Maccioni, a Holland America Line agora oferece "Uma Noite no Le Cirque", versão pop-up que oferece o mesmo cardápio, decoração e louça laranja por que a casa é famosa.
Essas, porém, são alternativas ao salão de jantar principal, e acarretam custos extras. Sem contar que os cardápios não têm nada a ver com os que foram dados a Grace Kelly, em 1956, quando ela atravessou o Atlântico na primeira classe do SS Constitution para se casar com o príncipe Rainier de Mônaco. Entre as opções, ovas de sável ao forno com manteiga e limão para o almoço e medalhão de foie gras de Estrasburgo para o jantar.
- É uma era que não existe mais, mas deliciosa de se recordar - constata Norma.