A primeira regra sobre viajar entre os Estados Unidos e a Inglaterra a bordo do Queen Mary 2, o navio principal da Cunard Line e o maior transatlântico do mundo, é nunca se referir a sua aventura como um cruzeiro. Você está, fica entendido, fazendo uma travessia.
Se viajar o deixa um pouco temerário e afia seus sentidos, estar a bordo do Queen Mary 2 no inverno dobra essa sensação de intoxicação. O oceano agitado, espirrando água pelas elegantes janelas do salão de jantares, a menos de um metro da sua garrafa de burgundy branco e seu tartare de atum, aciona seu instinto de sobrevivência. Você fica voraz: comendo um pouco mais, planejando ficar fora até um pouco mais tarde e demorando um pouco mais no sexo.
Qual é o lance dos navios (e trens e aviões) com o sexo? Tivemos que ponderar esta questão com uma nova avidez depois que um garçom desconhecido do QM2 abordou minha esposa, Cree, em uma tarde durante nossa travessia de sete noites, em janeiro.
Foto: Michael Kirby Smith/NYTNS
Esse garçom, conforme Cree contou mais tarde, era bem bonito, de uma maneira que lembrava o ator Andy Garcia. Ele ficou parado estranhamente perto dela.
Ele jogou um pouco de conversa fora e finalizou reafirmando: "Se houver qualquer coisa que eu possa fazer para tornar sua viagem mais agradável, me avise".
Ele saiu de perto, caminhou de volta até Cree 15 segundos depois e sussurrou, enquanto olhava nos olhos dela: "Qualquer coisa".
Esse convite foi um ótimo presente para nós - para Cree, para mim e para um amigo, Will, que viajava conosco - porque pelo resto da travessia nós dissemos lascivamente, pelo menos de hora em hora, o que nós decidimos que deveria ser o novo lema da Cunard: "Cunard. Qualquer coisa".
Um lema mais preciso do que "Cunard. Qualquer coisa", provavelmente seria "Cunard. Tudo". O Queen Mary 2 faz todo o possível para dominar você. Cada planejamento, deixado na sua porta na tarde anterior, é cheio de atividades: palestras, filmes, recitais, produções musicais, encontros de gays e lésbicas, missas, aulas de aquarela, reuniões dos Alcoólicos Anônimos, shows no planetário, degustações de vinhos, sessões de Pilates e jogos de uíste.
Uma travessia no QM2 é o tipo de coisa que as pessoas colocam no orçamento. Alguns passageiros na nossa travessia pareciam perigosamente perto de estourar esse orçamento. O clube de dança do QM2 atraía uma multidão frenética de jovens depois da meia-noite. Mas a idade média na nossa travessia, eu diria, era bem acima dos 60 anos. Havia uma abundância de cadeiras de roda, andadores e bengalas, tantos que, se todos os idoso tivessem jogado o seu no mar de uma só vez, eles teriam formado um recife artificial.
Foto: Michael Kirby Smith/NYTNS
As pessoas certamente morrem em cruzeiros. Enquanto eu fazia uma visita pelos bastidores (essas visitas guiadas custam 120 dólares, e os ingressos são raros), o médico mostrou um pequeno necrotério, com gavetas de metal para até quatro corpos. Se for necessário mais espaço, disse ele sorrindo: "sempre há o freezer de sorvetes".
Os dados demográficos dos navios de cruzeiro sempre foram mais inclinados para os idosos. Quem mais hoje em dia teria tempo para passar oito dias atravessando o oceano em janeiro? Ao manter um foco tão exclusivo na classe aposentada, porém, as qualidades da travessia estão se perdendo para a geração mais nova.
Você começa a perdoar o Queen Mary 2 por sua sensibilidade deselegante. Ele é, você passa a perceber, nada menos do que um resumo navegante de valores e tendências ingleses, um recipiente à prova d'água de nostalgia envelhecida. Foi construído para sobrevivência, não para velocidade. É um lugar para se comer arenque no café da manhã e tomar caldo de Marmite no almoço, chá inglês bem passado à tarde e um caneco de Lager ao entardecer. Você é avisado de que "concessões ou condecorações militares podem ser entregues nas noites de gala." Você pode até tropeçar em um grupo cantando junto - uma que eu acho absurdamente comovente - "My Bonnie Lies Over the Ocean". (É uma canção escocesa, mas deixa para lá.)
Um cínico diria que o QM2, lançado em 2004, na verdade foi construído na França. Essa pessoa também pode perceber que o registro do navio, em 2011, foi trocado para as Bermudas, terminando com 171 anos de registros britânicos para navios da Cunard. Essa pessoa divulgará que desde 1998 a Cunard é subsidiária da Carnival Corp. e que a tripulação do Queen Mary 2 é internacional. Você precisa segurar o choro frente a esses fatos desagradáveis.
O Queen Mary 2 e suas embarcações irmãs menores, o Queen Victoria (lançado em 2007) e o Queen Elizabeth (2010), viajam para quase qualquer lugar onde haja água: Extremo Oriente, América Central, Escandinávia e Islândia, Austrália e Ilhas Pacíficas, África e Oriente Médio. Você também pode marcar uma excursão mundial que o manterá à base de caviar - a Cunard é considerada a maior compradora do mundo - durante três meses.
Uma travessia transatlântica, no entanto, é o coração da seriedade remanescente da Cunard.
No inverno, esse é um passeio relativamente acessível: nossas passagens custaram um total de cerca de 1.500 dólares, embora bebidas alcoólicas, tratamentos de beleza, internet e outras coisas possam facilmente fazer esse número dobrar. O QM2 pode não ser mais o mais longo, alto e largo navio de passageiros existente, mas ainda é o maior transatlântico (que navega de um ponto a outro, por exemplo, através do oceano Atlântico, ao contrário do navio de cruzeiros que faz uma volta e termina onde começou) já construído. É o único transatlântico regularmente em serviço entre Southampton e Nova York.
Uma travessia é uma viagem tão interior quanto exterior. Fotografias em sépia nas paredes do QM2 representam os atores, escritores, políticos, aristocratas e playboys que faziam a travessia regularmente durante o apogeu regado a champanhe da Cunard, antes da era dos jatinhos roubar sua razão de ser. Você se lembra do serviço da Cunard durante a guerra. Winston Churchill observou que o Queen Mary e o Queen Elizabeth ajudaram a encurtar a Segunda Guerra Mundial em pelo menos um ano, tamanha era a capacidade deles para carregarem tropas.
Há uma grande tentação, durante seus primeiros dias a bordo do QM2, para correr freneticamente, experimentar de tudo. Demora alguns dias para perceber que os prazeres reais de uma travessia no inverno são os deliberados. Primeiro de tudo, há a beleza do oceano, mais interessante de olhar fixamente do que uma chama.
Você se vê devorando muitos livros, já que você está praticamente desconectado. (O serviço de internet no QM2 é lento e extraordinariamente caro.) Cree passou muitas horas de seus dias caminhando pelo passeio do navio (duas voltas somam cerca de um quilômetro) ou se banhando e lendo no Canyon Ranch Spa. Eu li, escrevi uma resenha sobre um livro e passei uma grande parte do tempo nos finais de tarde em uma jacuzzi externa com uma vista privilegiada na parte de trás do navio.
Em uma travessia para o oriente no inverno, os dias são cruelmente curtos e, para acomodar os fusos horários, uma hora é subtraída do relógio do navio todos os dias ao meio dia. As refeições, nesse horário acelerado, chegam mais rapidamente do que a fome.
Comida é uma coisa importante a bordo dos navios, e o QM2 não é exceção; há muitos lugares para comer. Nós tomamos café da manhã, almoçamos e jantamos no maior restaurante do navio, o Britannia; o custo de cada refeição estava incluído nas nossas passagens. A comida no Britannia era maravilhosa, especialmente para um restaurante que serve muitos milhares de refeições por dia.
Eu ainda não mencionei o cassino (perdi 75 dólares em duas horas em uma mesa de blackjack), as piscinas, a academia, a biblioteca, a livraria ou o fato de que os garçons do QM2 tiram as rolhas de até 600 garrafas de vinho por dia no mar. Eu não mencionei a estranha emoção de ouvir a buzina do navio, um som que David Foster Wallace uma vez comparou, em uma embarcação diferente, à "flatulência dos deuses".
Foto: Michael Kirby Smith/NYTNS
O Queen Mary 2 mantém os resquícios de um sistema de classes. Tem restaurantes, lounges e elevadores que o rebanho não pode usar. Já que a Cunard pensa em classes, você não pode evitar e faz a mesma coisa. Você pensa: "Viajar no QM2 é realmente uma coisa da classe alta, ou é a noção da classe média de algo que a classe alta faria?". Você começa a suspeitar que é a segunda opção. Cunard oferece "luxo" tanto quanto oferece luxo.
É melhor finalizar com sexo - ou com interação humana, de qualquer forma - do que com classes. No nosso primeiro dia no mar, meu amigo Will compareceu a um encontro para solteiros. Ele fez o triste relato: 60 ou mais mulheres compareceram a esse evento, todas acima dos 65 anos, e ainda assim havia apenas um punhado de homens.
Ele também aprendeu um dos segredos de uma certa camada da indústria de cruzeiros. Muitos desses homens tinham recebido passagem e comida grátis; eles estavam a bordo para atender as mesas e dançar com mulheres solteiras. Nas nossas últimas noites no QM2, nós vimos essas mulheres e seus parceiros de dança. Todos estavam com cara que iriam fazer essa travessia novamente num piscar de olhos.
Eu também faria.
Foto: Michael Kirby Smith/NYTNS