As coloridas fachadas das lojas e os letreiros luminosos nos bares e sorveterias perderam a disputa por atenção para um animalzinho de estimação, no Litoral Norte. Em meio ao movimentado centrinho de Capão da Canoa, o pequeno garnisé de crista vermelha se destaca no poleiro improvisado de madeira, pendurado sobre o rack do automóvel de seu dono. Quando desce em direção ao mar, vira o alvo das crianças.
— Comecei a trazer ele junto pra chamar a clientela e todo mundo gosta, pega no colo, faz carinho. Ele nunca machucou ninguém — afirma Egino Roberto Nicolau de Melo, 62 anos, que vende brinquedos artesanais na Rua Sepé.
O nome do animal, Bico, foi dado a partir da reação mais óbvia que se pode esperar de um galináceo:
— Foi a única vez que ele me bicou, quando eu peguei ele, e eu já tasquei o nome. Depois disso, nunca mais — explica o protetor do galo.
Bico troca "beijos" com Egino, e ambos pousam para as fotos dos veranistas, que cercam a dupla à beira-mar. A empresária Neuza Maria Brugnera, 56 anos, observava os dois encantada.
— O que é a natureza, né? Tanta coisa linda, basta prestar atenção. É lindo ver como os animais se identificam com seus donos — avalia.
A psicóloga Inúbia Duarte, 75 anos, define a relação como especial:
— Um companheiro pra ele, um amor mesmo.
As primas Corina Weigelt, sete anos, e Anne Amaral, seis, se divertiram com o garnisé. Enquanto Corina parecia temer fazer carícias, Anne a acalmava:
— Vai, ele não morde.
O bichinho entrou para a família Melo logo nos primeiros dias de vida - quando, segundo o artesão, o animal deixou a mãe galinha para dormir na cama dele. Hoje, com quatro meses, virou o xodó de seu pai adotivo, que já recusou propostas de venda.
— Uma senhora ofereceu R$ 20 — esbraveja.
Em casa, o morador de Capão da Canoa mantém um criadouro com duas dezenas de chocadeiras. Nenhuma, porém, tem o carinho dispensado ao famoso galinho, que o acompanha nas ruas.
— De vez em quando vem a fome e eu abato uma das galinhas. Mas o Bico não vai pra panela. O Bico é pra eternidade — profetiza, enquanto o galo cochila com o carinho sobre a cabeça.
O cuidado é tanto que até manicure - ou pedicure, dependendo do ponto de vista -, ele tem. E é o próprio Ginão, como é conhecido o artesão, quem pinta suas compridas garras, afirma, sem qualquer constrangimento:
— Às vezes pinto de esmalte amarelo, prata, vermelho... uma semana de cada cor, pra ficar mais bonito.
Fábrica de caminhões teve propósito nobre
No teto do veículo onde Bico exibe seu penacho negro com rajadas vermelhas, está "estacionada" a frota de caminhões de madeira, obra do artesão e um dos sustentos da casa, onde vive com a companheira. No entanto, a fábrica de veículos que transportam sonhos da criançada começou com outra finalidade: retirar Egino de uma depressão profunda, adquirida após incessantes cobranças em seu antigo emprego, de mestre de obras.
— Era muito difícil conseguir gente comprometida. Eles faltavam e eu precisava terminar a obra, era muita pressão. Aquilo me deixou muito mal, aí minha psicóloga disse pra eu procurar algo que me desse prazer — relembra.
O hoje nada deprimido homem conta que começou a construir carrinhos de madeira aos sete anos de idade - mesmo sem nunca ter estado na cabine de algum deles. Com a admiração pelo trabalho, passou a complementar a renda, que conta ainda com algumas pequenas casas de aluguel na praia.
À noite, com a cabeça muito mais tranquila do que nos tempos das grandes construções de concreto, ainda conta com Bico a seu lado.
— Sempre o mesmo ritual: ele se bica no espelho, com o reflexo, bica meus cabelos, talvez pra tentar tirar os fios brancos, e deita — detalha o processo.
Aparentemente, a missão de retirar os cabelos grisalhos é a única meta não alcançada pelo garnisé.