Ninguém mora mais ao leste no Rio Grande do Sul do que Sidnei de Andrade Fernandes, 61 anos, o Alemão Nei – mais orientais do que ele, só seus vizinhos leões marinhos, na Ilha dos Lobos. Foi na esquina em que o Rio Mampituba encontra o mar, em Torres, que o filho e neto de pescador ergueu há quase três décadas o seu próprio oásis: um sobrado dividido entre bar e casa, com a faixa de areia como quintal. Ali, recebeu amigos e clientes, surfistas e empresários de Porto Alegre, tornado-se testemunha e protagonista dos tempos em que a Praia dos Molhes era uma das mais badaladas do Estado.
Alemão Nei cresceu atravessando a barra do Mampituba em barcos de pesca, na época em que a região era um deserto de combros. Mas, por terra, chegou de vez a esta ponta do mapa em 1982, em uma Volkswagen Variant carregada de refrigerantes, cervejas, sanduíches naturais, brigadeiros e pedaços de nega maluca, preparados pela ex-mulher. Com o carro estrategicamente estacionado, botou dois guarda-sóis à frente e uma tábua atravessada entre eles, como se fosse um balcão.
Conquistou a simpatia de surfistas e veranistas que deixavam a água sedentos e famintos. Voltou nos seis verões seguintes, com a mesma estrutura – ausentando-se somente quando resolvia seguir os novos clientes pelos campeonatos de surfe do sul do país.
– Fora do verão, eu voltava para a pescaria, fazia bicos de servente de pedreiro. A praia, na verdade, não era para mim. Praia era coisa de rico, pobre tinha que trabalhar. A mudança veio no fim da década de 1980, quando, modéstia à parte, meu nome explodiu. Que tal eu, hein? – orgulha-se, em tom de brincadeira.
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Em 1988, ainda com uma vasta cabeleira loira, Alemão Nei ergueu o quiosque e cravou o nome nas areias de Torres: Oásis do Alemão Nei.
– No deserto, o oásis é um lugar onde os camelos se encontram para tomar água. Aqui, é onde recebo meus amigos para matar a sede – explica a origem do nome.
Para o surfista e empresário torrense Lauro Mallmann, o Barata, muito do sucesso do Oásis, no início dos anos 1990, veio em função da onda profissionalizante do esporte, com o Circuito Renner de Surf. Também ajudou o fato de a praia, ainda pequena, não ter tantos atrativos naquela época. Mas não foi só isso.
– O Alemão é uma simpatia e o lugar ganhou a cara dele, descontraído. Então frequentavam o bar desde mulheres de vestido longo à gente de chinelo. Com simplicidade, ele conseguiu harmonizar e reunir as tribos de surfe de Torres e da Capital, tanto é que ele se relaciona até hoje com famílias porto-alegrenses muito conhecidas – conta Mallmann.
Entre os amigos do empreendedor da Praia das Molhes está o empresário Eduardo Bier Corrêa, o Dado Bier, proprietário da cervejaria de mesmo nome. Influenciado pelo tio Jorge Gerdau Johannpeter, Dado caiu cedo com a prancha no mar de Torres. Considera-se surfista desde sempre, e leva os molhes e o Oásis do Alemão Nei como parte de sua própria história.
– Tenho uma memória viva dos sanduíches dele, de frango com cenoura, e da nega maluca também. O Alemão foi muito inteligente ao ver esta oportunidade de negócio. Eu sou apenas uma pessoa mais conhecida que frequentava o estabelecimento dele, mas ele é uma pessoa ícone para todo mundo que viveu o surfe nos anos 1980. Todo mundo faz festa quando o encontra – afirma Dado.
Foram verões de luaus na beira da praia, bandas tocando nos fins de semana, e o bar aberto 24 horas, todos os dias. De conversa fácil e alegria contagiante, encantou os veranistas, virou reportagem de matérias de jornais. Coleciona até hoje álbuns de fotografias – em todas elas, seu oásis está tomado de gente. Emociona-se toda vez que revisita suas próprias memórias.
– Depois disso, veio a decadência da vida. Sofri uma separação difícil da mulher com quem tive três filhos. Não consegui mais manter o negócio pelo caminho em que ele estava indo. Mas a vida segue, né? – conta.
O oásis, hoje, está bem diferente: funciona como restaurante de dia, e barzinho à noite – as especialidades da casa são tainha na brasa e casquinha de siri. Na Justiça, corre há alguns anos um processo sobre a permissão para a ocupação do local, que Alemão Nei diz ter sido autorizada em 1988 pela Superintendência do Patrimônio da União no Estado.
De pouco em pouco, a ponta mais ao leste do Rio Grande do Sul perdeu o agito de antes. Ao seu morador, restou rompantes de entusiasmo e fala frenética toda vez que conjuga os verbos no passado. Mas ele também trata de não fazer do pesar um sentimento tão grande quando se dá conta do passado. Afinal de contas, o Alemão Nei, o célebre guardião desta esquina do Estado, segue ali – ainda que sem a mesma cabeleira loura de antes.
– Esse lugar aqui é tudo o que eu tenho na vida. Fico doente só de ir para o centro de Torres. Porque esta é a minha praia, tem o cheiro do mar, a brisa, as gaivotas cantando quando amanhece. Já pensou abrir a janela de casa e dar de cara com a do outro vizinho? – deixa a pergunta no ar, apoiando-se no parapeito da janela do quarto, com a imensidão do mar à frente.
Acima do restaurante, a casa mais oriental do país tem uma cozinha, um banheiro, um closet e um quarto enorme – com uma janela voltada para o rio e duas para a praia. O ambiente é decorado com espelhos antigos, prateleiras cheias de placas de homenagens oferecidas por surfistas, pranchas de surfe e stand up e quadros com fotos antigas e recortes de jornais de pelo menos duas décadas atrás. No som, com certa frequência toca um CD de música havaiana, que o único morador da casa comprou no próprio Havaí, em uma viagem que ganhou da comunidade surfista. Trouxe de lá placas de carro e colares de flores, que pendurou nas paredes da casa. Mas, para ele, o que mais chama atenção em toda a moradia é a vista para os molhes. Por isso, as janelas ficam sempre abertas – e as cortinas vermelhas, com a inscrição de marcas de bebidas, só saem do lugar se o vento bater forte demais. Alemão Nei não as fecha nunca.
– Estou sempre de olho na praia. Meus amigos mexem comigo no Facebook: "Como está o teu quintal hoje?". Eu respondo: "A onda está boa, pode vir!" Virei um informante, até para a rádio eu ligo – conta.
Depois do oásis do Alemão Nei, há somente os molhes. E, depois dos molhes, só cruzando o Mampituba para ver o continente avançar mais adentro do mar em direção ao Leste. Ele até dá uns pulos para o lado de lá, o catarinense, onde mora uma das filhas. Mas se contenta em ir até ali. Alemão Nei já não está muito interessado em ir além deste limite do Estado.
– É aqui que está minha memória, minha vida – conclui.