Quando a embarcação de madeira se aproxima da única ilha da Lagoa dos Quadros, em Maquiné, surge à frente de Giane sempre a mesma cena: já de cabelos grisalhos, o pai corre em direção ao trapiche para esperá-la. Cercado de cachorros, ele recebe a filha com um sorriso. Entre as boas-vindas, adianta-se ao dizer:
– Vai ficar para o churrasco. Nada de querer ir embora hoje mesmo.
O trapiche já se desfez, e o churrasco não sai faz algum tempo. O pai de Giane morreu há um ano e meio, aos 84 anos. O que ela vê toda vez que desembarca na ilha são recordações das mais de três décadas em que Benjamin Trevisan morou solitário nos sete hectares e meio cercados de água. Filha única do ermitão, a arquiteta Giane Trevisan, 49 anos, é a herdeira das memórias da Ilha do Pontal, também conhecida como Ilha Mística – um cenário carregado de saudade, que em breve deve ser posto à venda.
Ela tinha 12 anos quando viveu o divórcio dos pais e a definitiva ida de Trevisan para a ilha. O local havia sido comprado pouco tempo antes, de uma família de pescadores que morava às margens da lagoa – eles tinham registros da posse da área desde o século 19. Foi em 1980, aos 50 anos, que Trevisan largou a venda de máquinas agrícolas e chegou à ínsula com um pedreiro, em um barco cheio de material de construção. Ergueu uma garagem para as embarcações, um cômodo que fazia as vezes de sala e quarto, um banheiro, um anexo com churrasqueira para receber visitas e uma marcenaria, onde tudo ganhou forma.
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As construções, que ocupam quase nada do terreno, são em tijolo aparente. As paredes foram pintadas de branco; as vigas e molduras, deixadas à cor natural; as portas e janelas ganharam pinceladas de verde. Os hibiscos vermelhos passaram a enfeitar ainda mais a centenária figueira que serve até hoje de porta de entrada para a ilha. Um pneu amarrado com cordas virou balanço em uma das árvores e, perto da casa, nasceram flores de uma alamanda amarela.
– Meu pai nunca foi urbano. Ele gostava da natureza, de se isolar. Era quieto e tranquilo. Tinha muitos amigos porque era uma pessoa querida, mas preferia sempre ficar sozinho, tanto que nunca refez o lado amoroso. Ele veio para cá e fez a vida dele. Repetia sempre: "Quero morrer aqui" – conta Giane.
Pode não ser fácil para um pré-adolescente compreender que o pai está deixando a cidade para viver ilhado. No caso de Giane, não foi mesmo. Na época, ela continuou morando em Porto Alegre com a mãe, a advogada Marly Freitas, morta no ano passado. Para ver o pai, tinha de tomar a estrada até Maquiné, enfrentar os caminhos de chão do distrito da Prainha e fazer sinal de fumaça para que Trevisan viesse buscá-la na margem da lagoa. Sinal de fumaça mesmo: não havia telefone fixo na ilha e celulares não existiam. O jeito era lançar sinalizadores para avisar que estava ali, à espera de carona.
Nos verões ficava mais fácil. Giane seguia com a mãe para Rainha do Mar, no Litoral Norte, em novembro, e voltava para casa somente em março. Durante a temporada, frequentava seguidas vezes a morada do pai. Levava amigos para passar o dia na ilha. A mãe quase sempre ia junto, já que a separação de Benjamin e Marly não impediu que continuassem bons amigos. Durante o ano, no entanto, as visitas ficavam mais restritas. Se bem que o pai ajudava: às vezes saía da ilha para ver a filha na Capital, onde ficava por dois dias.
Não mais do que dois dias. A saudade da solidão apertava, e Trevisan regressava às águas da lagoa. Voltava para a rotina de cuidar das pequenas plantações de café, milho, abóbora, tomate, chuchu e o que mais crescesse e pudesse alimentá-lo. Lia, assistia à televisão, preparava a sua própria comida. Passava as horas na companhia de um casal de pastor alemão e uma vira-lata, Sara, a última moradora a ir embora da ilha. Dedicava-se ainda ao manejo das cabras, coelhos, um pavão e uma vaca, que certo dia amanheceu morta.
– Acho que ela descobriu que estava em uma ilha e morreu do coração – brinca Giane.
Nos meses mais quentes, Trevisan atirava-se na lagoa, sem ir muito longe. O homem que vivia em uma ilha não sabia nadar. Vestia sempre um colete quando se deslocava de barco até a margem, para visitar amigos em Maquiné nas noites de fim de semana. Era um gesto de cuidado, porque medo da água ele não tinha. Na volta de um destes jantares em terra firme, quando a escuridão já tomava conta da lagoa e o vento soprava forte, o ermitão desligou os motores do barco, pois temia não enxergar algum obstáculo durante a travessia. De remo, tentou encontrar o pedaço de terra que chamava de seu. Mas aquele breu todo o deixou à deriva. Passou a noite, como sempre sozinho. Mas dentro de um barco em meio à lagoa.
– Meu pai gostava muito de água, e amava essa lagoa pelo fato de ela ser parada. Ele não viveria em uma ilha se ela fosse no mar. Achava o mar muito agitado, incomodava-se com o barulho das ondas, que lhe tiravam até o sono – relembra a filha.
Trevisan conseguiu fazer com que a Companhia Estadual de Energia Elétrica (CEEE) trouxesse luz até a ilha. Era o que garantia a leitura noturna e as poucas horas em frente à televisão. A água era armazenada em cisternas em dias de chuva e também captada da lagoa, mas só o necessário para o dia a dia do morador e do caseiro que passou a ajudá-lo, anos mais tarde. Os alimentos não produzidos ali eram comprados no supermercado, em incursões semanais.
Uma torre de celular foi instalada, lá pelas tantas, não muito longe da lagoa. Foi quando o homem comprou um aparelho, com o qual se comunicava com a filha e o neto, Lucas, hoje com 12 anos. As visitas da família passaram a ser a cada três meses. De muito mais do que isso, Trevisan não precisava.
– Foi uma opção de vida bem radical. Ele veio para cá por escolha, não por nenhum outro tipo de problema. Foi uma pessoa que se encontrou, que tinha paz de espírito e um sorriso no rosto. Passava calma – resume Giane.
Em 2011, anos 80 anos, após três décadas na ilha, Trevisan dava sinais de que estava perdendo a memória recente. Esquecia-se de que já havia almoçado, não se lembrava de ter conversado com a filha. Repetia-se, assim, nas ações mais triviais de sua rotina. Não demorou para que fosse diagnosticado com Mal de Alzheimer. De acordo com Giane, um tratamento inovador na época, feito com injeções de ozônio, até ajudaram o pai a ter uma significativa melhora. Mas era preciso fazer sessões semanais em Porto Alegre, coisa a que ele não estava disposto. Não queria deixar a ilha.
– Até que chegou a hora em que não tivemos outra opção a não ser levá-lo para uma clínica. Foi uma decisão difícil a de tirá-lo daqui. Sabíamos de alguma maneira que esta ilha fazia muito bem a ele. E que, se o levássemos, talvez ele não fosse mais voltar. Mas era preciso ter assistência e dignidade nos últimos anos de vida – afirma a filha.
Trevisan queria morrer na Ilha Mística. E de certa forma foi o que aconteceu – pelo menos no que se refere às suas memórias. Nos anos antes de morrer, era daquele lugar que ele lembrava. Falava somente frases desconexas, mas a palavra ilha volta e meia surgia entre suas sentenças. Reagia sempre bem quando a filha dizia que ele deveria "melhorar logo, assim poderia voltar para a ilha".
Benjamin Trevisan morreu em agosto de 2015, aos 84 anos, em uma clínica em São Marcos, município serrano onde nasceu. Giane, herdeira da memória do local, visita mensalmente a ilha. Para ela, parece que o lugar ficou ainda mais místico:
– Eu sinto a presença dele aqui.
Questões legais
Em 2005, após o Estado mover uma ação contra Trevisan, pedindo a reintegração de posse da área, a Justiça definiu que, por ser de propriedade privada desde o século 19, a ilha não pertencia ao Estado. Segundo Giane, a escritura da posse do local já havia sido lavrada em cartório pelo pai, que reunia vários outros documentos comprovando o uso da terra. Nos próximos meses, ela pretende entrar com uma ação de usucapião para, além da posse, ter a propriedade da ilha. Ou de parte dela: nos anos 1990, Trevisan negociou metade da ínsula para o empresário José Luiz Krupp. De acordo com a herdeira, no entanto, a conclusão da venda ficou pendente. Hoje, a intenção de Giane é vender a ilha.
– Me dói muito ter de me desfazer deste lugar. Só que eu sei como esta ilha foi um dia, tão bem cuidada. E eu, com minha vida em Porto Alegre, infelizmente não posso dar a atenção que este local merece – diz.
Na Justiça, existe agora uma ação do Ministério Público que torna obrigatória a preservação do espaço segundo critérios ambientais. Nos últimos anos, o lixo passou a ser encaminhado para a coleta em Maquiné, os animais foram retirados, e os eucaliptos, derrubados – no local devem crescer somente árvores nativas. Qualquer construção ou modificação na ilha, agora, só com permissão dos órgãos competentes.