A porta do que parecia um enorme depósito fincado no bairro Santa Luzia, em Tramandaí, abriu-se para uma cena espantosa. Na verdade, não se tratava de um depósito, e sim de uma cápsula do tempo. Na tarde da última quinta-feira, lá estavam os sete veículos militares GMC CCKM datados de 1942 e que fizeram a alegria dos turistas em Tramandaí: os dindinhos, ícones da praia ao longo de mais de quatro décadas.
Muitos órfãos do dindinho não sabem, mas a empresa sobrevive. Depois de perder espaço para o Carrossauro no serviço de city tour da cidade praiana e deixar de fazer o transporte intermunicipal em 2006, a antiga Dindinho Transportes Ltda. agora é Dindinhotur.
Como se a história não tivesse sido interrompida, os dindinhos ainda levam gente a passear, mas agora em eventos pelo Estado. Nos deslocamentos pelas rodovias gaúchas, os veículos da II Guerra Mundial chamam a atenção por onde passam. Abanos e pedidos para fotos são comuns.
- Tem de ter bastante calma e conhecer os limites do veículo para dirigi-lo. A ré, por exemplo, é muito difícil. Também não dá para correr muito porque ele "joga" para os lados. Mas na estrada é beleza. Em uma viagem até o Cassino, fui a oitentinha - comenta Carlos Eugenio Oliveira da Silva, 44 anos, que desde 1987 já foi trocador, mecânico e motorista de dindinho.
O negócio, que já existia pelo menos desde o início da década de 60, foi comprado pela família Michelon em 1975. Naquele ano, Antônio Michelon adquiriu os veículos do Exército em um leilão, conta a herdeira dos dindinhos, a professora aposentada Angela Virginia Cortoni Michelon. Ao lado de Silva, ela construiu o prédio onde os aposentos comuns de uma casa dividem espaço com os veículos. Para reerguer a empresa, aposta na imagem lendária dos dindinhos marrom-conhaque:
- Por que a gente não se desfaz dos veículos? Porque acabaria uma história.
Carro lotado, sem pagar
Terminal Turístico de Tramandaí, 6h, anos 80. Uma multidão se acotovela para subir no dindinho. Para não pagar a tarifa de Cr$ 4, alguns escalam as laterais do carro - como se não bastasse, sempre aparecia um bebum para declarar que viajaria de graça. Mas a maioria havia chegado de ônibus e queria alcançar o centro de Tramandaí.
- Vai pra onde? - pergunta um homem, com mulher e filhos ao lado.
- Até o Centro - responde Carlos Eugenio Oliveira da Silva, o trocador.
- E lá tem lugar para comprar leite?
Logo o dindinho, superlotado, com gente em pé, sai pela areia - naquela época, nada havia de errado em transitar pela beira da praia em um veículo abarrotado de gente. O trocador viajava em pé. Nas mãos, segurava dinheiro e tíquetes, e fazia o câmbio do troco na pochete presa à cintura. O carro sacudia, os bancos de madeira não eram confortáveis, mas atravessar a cidade com a brisa afagando o rosto era uma das melhores diversões da praia.
Um dos dindinhos em funcionamento nos anos 1980
Foto: Vilmar Calistro, BD, 17/02/1982
O lanterninha tem saudade
É difícil convencer o Carretel a falar sobre a época mais divertida da sua vida. Deve ser porque o Cine Mar, o cinema de Atlântida onde trabalhou como porteiro, lanterninha e gerente de 1958 a 1979, já não existe mais. Desativado em 1979, ficou abandonado até o telhado ruir e ter de ser demolido. Ficou meio doloroso para o Carretel relembrar os anos de ouro do cinema, localizado na Avenida Paraguassu. Mas depois que engata no tranco, ele volta a sentir a felicidade daquele tempo e abre um sorrisão.
- Eu tenho saudade daquela época. Era divertido. Os 600 lugares estavam sempre 80% ocupados. E eu via os jovens namorando - recorda Calino Monteiro Fernandes, o Carretel.
Eram outros tempos. O gerente do cinema, Wilson Dieterich, tinha de levar os filmes aos pedaços, de lambreta. Se tivesse algum problema, os espectadores tinham de esperar até que chegasse o rolo da próxima sequência.
Um dos maiores desafios daqueles dias para Carretel, hoje com 73 anos, era impedir que as diabruras da rapaziada prejudicassem o cinema. Uma turma o incomodava especialmente. Eram os tipos que instalavam uma espécie de palito de cheiro ruim no banheiro. Aos poucos, o budum se espalhava pelo cinema. As vaias tomavam conta. Era um bruto cheiro de cocô.
- Eu tinha que pegar os líderes. Mas, naquela época, a gente tinha medo de tocar nos guris, que eram uns filhinhos de papai - diz.
Carretel armou um plano. Montou um time de futebol com os guris para identificar cada um e dar um jeito de fazê-los abandonar a brincadeira fedorenta. O resultado foi diferente do esperado. O time começou a ganhar e não parou mais. Venceu tudo que era campeonato, e os rapazes deixaram o cinema em paz. Carretel ganhou um aumento de salário.
E o apelido? Quando jovem, Fernandes era um baita corredor. Como batia qualquer um, ficou sem graça competir com ele. Então, criaram uma regra especial: ele ficava deitado na pista, segurando uma fita. Quando os competidores passavam e a rompiam, Fernandes podia levantar e sair atrás dos concorrentes. Por causa da fita, levou o apelido de Carretel.
Com cinco filhos, aposentado desde 2007, Carretel não esbanja velocidade mais, porém, continua cheio de energia. Ainda que more longe da praia, não deixa de ir ao mar. Em vez da pernada até a orla, deve ser um dos poucos banhistas a chegar à areia de bicicleta.
Carretel no local onde era o Cine Mar, cinema de Atlântida
Foto: Félix Zucco
Outros carnavais...
Com o término do Carnaval, do Planeta Atlântida e do horário de verão, a conjuntura informa: é inegável que o veraneio está no fim. As recordações ficarão, mesmo que alguns lugares desapareçam. Foi o que ocorreu com quem passou pelo Zambezi Crocodilo Zoo, em Osório.
Até hoje, os antigos visitantes lembram do som da boca dos répteis se fechando. Era um estouro assustador. Aberto em 1992, o espaço funcionou até 2003, quando contestações por parte de órgãos do meio ambiente levaram ao fechamento do zoológico. Além dos cerca de 80 crocodilos africanos de mais ou menos cinco metros de comprimento, o local expunha veados, capivaras, macacos e aves. Restaram os tanques onde ficavam os crocodilos, agora usados para criação de peixes, e a saudade do tratador dos répteis, Silvio Espíndola de Jesus, 41 anos.
- Comecei como tratador aos 17 anos, e fui contratado quando o Zambezi tinha uns dois meses de existência. Era muito legal fazer desde a coleta dos ovos até acompanhar o nascimento dos filhotes - relata.
Depois do zoológico, Espíndola foi cinco vezes à África para trabalhar recolhendo ovos de crocodilos. Hoje, vive em Osório e tem outras ocupações, como jardinagem. Até o ano passado, interessados continuavam batendo à porta da imobiliária de Ruivas Almeida de Andrade, 52 anos, querendo saber se o zoológico ainda funcionava.
- Crocodilo, antes do zoológico, eu só tinha visto na televisão. Se o Zambezi existisse hoje, seria uma atração turística como são os cataventos do Parque Eólico - compara ele.
Hoje, no local onde era o Zambezi Crocodilo Zoo, fica o sítio Santa Luzia
Foto: Félix Zucco
Das coisas que não existem mais
> Baronda: um dos pontos de encontro mais famosos da praia de Capão da Canoa, foi demolido em dezembro de 2010, devido a um pedido de reintegração de posse feito pelo governo federal, já que o bar se encontrava na faixa de areia, pertencente à União
> Ponte de pedestres do Rio Tramandaí: por causa da sua precariedade, a ponte que ligava Imbé a Tramandaí foi demolida no início dos anos 2000, depois de mais de duas décadas de uso
> Braço sul da plataforma de Atlântida: desabou durante uma ressaca do mar na madrugada de 25 de maio de 1997
> Lilico: versão do dindinho para Capão da Canoa, o lilico teria surgido em meados da década de 60, e por décadas transportou os turistas para lá e para cá na cidade
> Hotel Riograndense: datado da década de 40, foi demolido em 2003 para dar lugar ao complexo residencial e comercial Riograndense Shopping Lynemar, em Capão da Canoa. Em 1990, já havia sido derrubado o antigo galpão de madeira que havia hospedado o refeitório do hotel e um boliche