De saco cheio, era como Telmo se sentia. Cansado de tudo, meio deprimido.
Advogado de respeito, vivia de terno e gravata, tinha uma coleção de relógios e morava em uma cobertura de 220 metros quadrados em Porto Alegre. Achava sua vida um porre - a crise da meia idade se abatera sobre ele. Decidiu morar em uma casa de madeira, de frente para o mar, 19 metros quadrados na encosta de um morro na Praia da Gamboa, em Garopaba, sul de Santa Catarina. Vendeu o apê. Largou o trabalho.
Em sua primeira noite na casa nova, tirou do pulso o relógio que usava - nunca mais tornaria a colocá-lo, até porque todos os seus 15 relógios acabariam destruídos pela maresia. Não queria saber de horário para acordar, nem para almoçar, tampouco lhe interessavam os carrões que comprava todo ano, só queria paz, descanso, natureza, nada de escritório nem rotina nem compromissos.
- Eu só pensava no meu pai. Ele trabalhou a vida inteira sem parar e, quando enfim conquistou um bom patrimônio, não tinha condições físicas de aproveitá-lo - recorda hoje, aos 65 anos, o ex-advogado Telmo Soares Martins, que desde os 43 vive na Gamboa.
Ele lembra do dinheiro se esgotando - depois de cinco anos morando na praia, viu-se obrigado a pensar em uma fonte de renda. O que poderia fazer? O que poderia dar certo naquela casa de madeira, isolada no alto de um morro, rodeada pelo verde da mata, de frente para um mar cristalino, em uma praia tão pequena, mas tão cheia de jovens, tão cheia de charme, tão cheia de pessoas que, como o próprio Telmo, só buscavam lazer?
Um bar.
Ou uma boate. Ou ambos.
Telmo já havia anexado um pavimento sobre a casa, também já tinha espichado a área da sala. Fã de rock'n'roll, amante da vida noturna - "sempre sofri para trabalhar cedo" -, instalou luzes coloridas, um globo espelhado, faixas de pano em frente à varanda e, lá de baixo, na beira da praia, quem olhava para o morro pensava (e talvez ainda pense):
- É cabaré.
Não era.
- Fumam maconha.
Telmo nega.
Com o nome D'Tudo 1 Pouco, o local virou ponto de encontro para moderninhos do litoral. E o nome do bar faz sentido porque, quase todo dia, nativos e pescadores se juntam à turma para tomar um trago, às vezes seguido de dança - pode ser no embalo do rock, do pop, até do sertanejo, e os públicos vão se emaranhando feito cipós em meio àquele mato com vista para o Atlântico.
Não dá para ganhar muito dinheiro, Telmo admite, mas diz que é fácil viver com pouco na Gamboa. Recorda dos tempos de advogado, quando comprava sacolas de roupa e nunca usava tudo. Tinha uma coleção de canetas que, no frigir dos ovos, não servia para nada.
- Naquela época, segui o rumo que a vida me apresentou, mesmo que nem fosse meu rumo preferido. Mas deu tempo de fazer uma nova escolha. Meu lugar é aqui. Porque aqui, bom, aqui eu tenho tudo - conclui ele.
Henrique Schucmann trocou São Paulo pela Gamboa
SURTO DE RECOMEÇO
Henrique surtou, teve um troço.
Olhou para o médico segurando aquela injeção e, depressivo que estava, sem dormir durante dias, mergulhado em problemas financeiros, afetivos e familiares, enxergou o demônio - o diabo em pessoa, com chifres e rabo. O horror, aquele médico. Henrique disparou consultório afora, gritando e descendo 17 andares de escada, alcançou as ruas de São Paulo, cortou a frente dos carros, correu e correu e correu até desabar em casa.
A situação de Henrique Schucmann, artista plástico de Erechim radicado na capital paulista, era preocupante antes de conhecer a Praia da Gamboa, em Garopaba. Tratava-se de um caso extremo de metanoia - a clássica crise da meia idade que também alvejou o advogado Telmo, retratado nas páginas anteriores. Henrique tinha 48 anos (hoje tem 62) e, depois de ver o capeta, passou oito meses catatônico em frente à TV. A coisa era séria.
Pois um dia uma colega de tapeçaria resolveu levá-lo à Gamboa: tinha casa de veraneio, queria animar o amigo deprê. Para piorar - mas em seguida falaremos de coisas boas, fique tranquilo -, o pai dele recém havia morrido. Deixou-lhe uma herança. Apaixonado pela praia que recém conhecera, Henrique decidiu gastar a grana inteira em 10 terrenos por ali. Sua vida mudaria para sempre.
- Montei uma casinha de madeira com dois quartos. Um ano depois, recebi meus filhos e uns 10 amigos. E um conhecido meu, publicitário, achou que eu estava construindo um albergue.
O tal publicitário morava nos Estados Unidos. Queria voltar ao Brasil e, para ganhar mercado, precisava desenvolver seu primeiro site em português. Convenceu Henrique a fazer um novo pavimento e acomodar 23 camas em cinco quartinhos, tudo meio improvisado - mas também divertido, excitante, havia um novo sentido na vida de um ex-deprimido. Já na primeira temporada, o Pouso do Tapeceiro lotou.
Algum dinheiro foi entrando, Henrique voltou a lecionar tapeçaria, instalou seu ateliê ali dentro, nunca mais deixou a Gamboa, investiu bastante na pousada - e agora são 40 vagas em quatro sobrados rústicos erguidos no jardim. Mais um que abandonou a cidade, como o advogado Telmo.
- Estou desenhando uma camiseta que vai dizer: "Gamboa, surto coletivo de mudança de vida" - anuncia Henrique.