"Mesmo que o mundo desabe num tempo feio, sei o que as asas do poncho trazem por dentro". O trecho de Batendo Água, sucesso na voz do cantor Luiz Marenco, reflete uma convicção: mesmo nos momentos difíceis, o gaúcho conhece o valor e a força que tem dentro de si. Passado mais de dois meses da enchente, que não poupou os galpões dos Centros de Tradições Gaúchas (CTGs), tradicionalistas se unem em mutirões de limpeza e de consertos para a retomada das atividades.
Conforme um levantamento do Movimento Tradicionalista Gaúcho (MTG), no ápice da catástrofe climática, 41 CTGs foram afetados e nove ficaram isolados pela enchente. Ainda hoje, pelo menos 17 entidades estão tentando recuperar a estrutura e a história que chuva lavou.
A marca da água na parede de quase quatro metros é visível no CTG Alma Crioula, no bairro Mathias Velho, em Canoas – um dos cinco CTGs afetados na cidade. O galpão da entidade ficou por 28 dias alagado e a patronagem ainda calcula o tamanho do prejuízo. A entidade tem recebido os sócios para mutirões, como ocorrerá neste sábado (20). O grupo vai limpar o mobiliário e analisar o que pode ser reaproveitado.
— Vamos ter que ver por onde começar. Estamos com o caixa no zero. Em janeiro, quando deu o temporal, arrancou o telhado do galpão e tivemos que trocar. Agora, o telhado é novo, mas gastamos tudo que tínhamos — conta Valdir Vaz Machado, 69 anos, patrão do CTG.
Uma das preocupações do patrão é a condição do tablado em madeira. No centro do galpão, é em cima das tábuas que ocorrem os cursos de dança, os ensaios das invernadas artísticas mirim e juvenil e os bailes - fonte de renda para a entidade.
— O tablado estufou, está irregular. Vamos tentar colocar peso em cima para ver se volta para o lugar. É uma madeira boa, que não apodrece tão fácil — comenta o tradicionalista, que está no nono ano como patrão.
Entidades estiveram mobilizadas para ajudar as comunidades
Entidades das 31 Regiões Tradicionalistas estiveram, durante maio, mobilizadas em ações de acolhimento, produção de marmitas e recebimento de doações. O MTG divulgou que mais de 500 CTGs funcionaram como ponto de apoio.
Integrantes do CTG Aldeia dos Anjos, de Gravataí, prepararam refeições por 40 dias, chegando a marca de 250 mil marmitas entregues.
— Chegamos a produzir 11 mil marmitas em um único dia e mandamos para cidades da volta, afinal Gravataí foi menos atingida e está num ponto estratégico. Além disso, abrigamos quase cem pessoas e recebemos 27 carretas de doações — conta Bruno Silva, 36 anos, dançarino da invernada adulta, que coordenou as operações.
Um dos CTGs que também abriu as portas para desabrigados foi o Roda de Chimarrão, no bairro Guarujá, na Capital.
— Mais de cem pessoas ficaram abrigadas no nosso CTG, algumas eram das ilhas. Também atuamos recebendo doações. O espaço se tornou um abrigo com centro de distribuição. Além disso, tinha um espaço para mais de cem animais — conta Josoé Paulo Cacenot, 52 anos, primeiro capataz da entidade.
O local ficou por cerca de dois meses ocupado por famílias que não tinham como retornar para o antigo endereço. Segundo Josoé, o CTG arcou com as despesas de luz e água. Já a comida vinha de fora, através de uma parceira que entregava marmitas e doações.
— Muitos CTGs se uniram nesse período. E agora já estamos retomando todas as atividades, os cursos de fandango, as invernadas e organizando bailes para manter o galpão — conta o capataz.
Busca por recursos
Conforme o MTG, o gestor de Relações Institucionais do movimento, Rogério Bastos, mantém contato com o Ministério da Cultura (MinC) para viabilizar recursos às entidades tradicionalistas afetadas. No momento, o MTG aguarda um retorno do MinC.
— Fizemos um levantamento através das coordenadorias regionais, que relataram quais entidades foram atingidas em cada cidade. Já passamos a listagem das entidades para a Sedac (Secretaria Estadual da Cultura) e para o MinC — afirma o gestor.
No CTG Alma Crioula, jogos e eventos colaboravam financeiramente
O CTG Alma Crioula, de Canoas, é reconhecido pelos títulos nos esportes tradicionais, como bocha campeira, truco, tava e tetarfe. Na entidade, homens e mulheres participam de torneios e disputam títulos em rodeios, estaduais e nacionais. No cotidiano, antes da enchente, os jogos reuniam os integrantes da entidade e também de outras. O bolicho, que era equipado com freezers, movimentava o caixa com o lucro da venda de bebidas.
No olhar de Valdir e dos companheiros da patronagem, a tristeza é notável ao se deparar com as canchas dos jogos ainda destruídas.
— A prioridade é organizar o salão para começar o curso de dança e as invernadas voltarem. Aqui (no espaço dos jogos), vamos mais devagar. Mas a bocha ainda é uma das nossas fontes de renda, por causa do movimento que atrai. Temos muito serviço para fazer aqui — afirma Valdir.
Na cancha do osso, restam alguns troféus pendurados nas paredes, outros estão quebrados pelo chão. Valdir estima que no local havia mais de mil prêmios de campeonatos artísticos, campeiros e esportivos, sendo dos jogos a maior parte.
— O que nos aproximou foi os jogos — comenta Jesus Antônio Veber, 72 anos, tesoureiro da entidade, ao lado de outros membros da patronagem.
De auxílio financeiro, chegou apenas uma doação de R$ 8 mil de uma empresa que adotou CTGs afetados pela cheia.
— Na próxima semana começamos os cursos de novo e vamos ver quantos das invernadas vão retornar, porque a população da Mathias foi toda atingida. Além disso, para fazer um evento está difícil, mas uma hora teremos que fazer. Temos bastante despesa para manter a casa — relata o patrão, que também teve a sua residência alagada.
Eventos são realizados para a entrada de recursos. Uma domingueira estava marcada para o dia 19 de maio. A faixa de divulgação ainda está pendurada na entrada do terreno. Os ingressos incluíam baile e almoço.
— Eu tinha comprado a carne, galeto e as bebidas, mas foi tudo para o lixo. Estava tudo revirado.
Já o Baile da Linguiça, evento que já é esperado no CTG, foi adiado. Mas, conforme a patronagem, pode ser que ainda ocorra neste ano como forma de levantar recursos para a recuperação total da estrutura:
— Todo mês de julho fazemos o Baile da Linguiça. Já tinha a banda contratada e tudo estava sendo organizado. É um baile que dá lucro, enche o CTG. Agora vamos ter que fazer fora de época.