Substantivo masculino que significa remissão de uma culpa, dívida ou pena; desobrigação do cumprimento de um dever; disposição para perdoar. A definição de fácil entendimento para a palavra perdão contrasta com a complexidade do processo psicológico que envolve sua busca. Não há receita a seguir, já que a capacidade de alcançá-lo varia de acordo com características individuais, mas especialistas garantem que abandonar mágoas pode reduzir níveis de estresse e ansiedade, aumentando a qualidade de vida e o bem-estar.
Há muitos anos abordado do ponto de vista religioso, o perdão virou objeto de estudo da ciência. No Brasil, trabalhos começaram a se multiplicar nas duas últimas décadas, dentro da área da psicologia positiva — na qual o ato de perdoar é considerado uma das 24 forças de caráter, junto à humildade e à generosidade, por exemplo. Os psicólogos ressaltam, contudo, que essa disposição não significa que a pessoa vá esquecer o ocorrido ou restabelecer laços com o indivíduo que a magoou.
Irani Argimon, professora do Programa de Pós-Graduação (PPG) em Psicologia da Escola de Ciências da Saúde e da Vida da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), diz que o perdão é um processo que envolve ferramentas cognitivas, emocionais, motivacionais e sociais. Está relacionado às transgressões interpessoais, que são inevitáveis na vida, seja com familiares, amigos, colegas ou outros indivíduos:
— Sempre corremos o risco de machucar alguém e sermos machucados. E, quando nos sentimos ofendidos ou prejudicados, seja fisicamente ou psicologicamente, deparamos com a necessidade de processar aquele ato, o que pode resultar em mágoa, rancor, tristeza. Pode ser mais leve ou mais forte, dependendo da pessoa.
O que significa perdoar
De acordo com Irani, o perdão começou a ser estudado por psicólogos e psiquiatras após a Segunda Guerra Mundial, e os primeiros livros sobre o assunto foram lançados na década de 1970. Esse processo tem definições diferentes em muitas culturas e religiões, estando muito presente na Bíblia, por exemplo.
— É diferente de conceder desculpa pessoalmente, justificar uma ofensa ou esquecer. Também não implica em uma reconciliação. Perdoar está relacionado a fatores pessoais, culturais e sociais. Vai depender da personalidade da pessoa, do momento que vive, da sua cultura, do fator social e familiar — comenta a professora da PUCRS.
Dessa forma, o perdão também está ligado à interpretação cognitiva dos fatos, acrescenta a professora do PPG em Psicologia da Unisinos Ilana Andretta. Isso significa que determinada ação pode ser considerada grave para quem a recebeu, mas não para quem cometeu.
Esse processo de entender e aceitar pode ser mais lento, porque envolve a empatia e a compaixão. Empatia para se colocar no lugar do outro e compaixão para saber o que pode fazer com isso.
ILANA ANDRETTA
Professora da Unisinos
Conforme Ilana, o processo de perdão envolve quatro etapas, sendo que a primeira é reconhecer que houve dor para ambos os lados. A segunda é entender a dor, as consequências e os estímulos que geraram aquele comportamento do outro. A terceira está relacionada a aceitar que as pessoas são diferentes e têm crenças distintas. Já na última, a pessoa deve decidir o que fazer a respeito daquela situação.
— Esse processo de entender e aceitar pode ser mais lento, porque envolve a empatia e a compaixão. Empatia para se colocar no lugar do outro e compaixão para saber o que pode fazer com isso. Muitas vezes, quando a pessoa aceita o que ocorreu, também escolhe fazer algo diferente. E aí vem a tomada de decisão, pode decidir pela compaixão e vida que segue — resume a professora da Unisinos.
Autocrítica e autocompaixão
O professor Robert Enright, autor do livro Exploring Forgiveness, também assinado por Joanna North, elaborou um “modelo de perdão interpessoal”, que é constituído de 20 etapas pelas quais os indivíduos podem passar para alcançá-lo (confira no gráfico abaixo). Ao apresentar esse modelo, no artigo “Aspectos conceituais do perdão no campo da Psicologia”, publicado em dezembro de 2012 na revista Psicologia: Ciência e Profissão, dos Conselhos Federal e Regionais de Psicologia, os especialistas ressaltam que nem todas as pessoas passam por todas as etapas, as fazem naquela ordem específica ou despendem do mesmo tempo nesse processo.
Ilana concorda e destaca que não existe um passo a passo, porque o processo depende das variáveis cognitivas e emocionais de cada pessoa. Também acrescenta que o caminho até o perdão envolve outros dois conceitos importantes: autocrítica e autocompaixão. Segundo a professora da Unisinos, os níveis de autocrítica também se refletem no tratamento com os outros. Assim, a pessoa que é mais dura consigo pode ter mais dificuldade para perdoar a si e ao próximo:
— É o oposto da autocompaixão. Quanto maiores os níveis de autocompaixão, maior a capacidade de perdão e de aceitação com o outro. Altos níveis de autocrítica estão relacionados à supressão e à ruminação, que é aquele pensamento que fica voltando. Esses dois são altamente nocivos para estresse, ansiedade e depressão. Níveis baixos de autocrítica e altos de autocompaixão diminuem os níveis de supressão e ruminação, o que aumenta a qualidade de vida e o bem-estar.
Além do perdão para si e para o outro, existe o perdão para a força da natureza, que pode ser exemplificado com os sentimentos de mágoa e raiva relacionados à tragédia ocorrida no Rio Grande do Sul, complementa Irani. Mas essas situações podem ser mais complicadas de processar, já que as pessoas costumam buscar um culpado. A professora da PUCRS enfatiza, contudo, que o perdão é uma virtude humana que deve ser cultivada, exercitada e desenvolvida.
— É preciso reconhecer que há coisas que nem tu, nem as outras pessoas são completamente responsáveis. Para perdoar, não é necessário desenvolver uma resposta positiva em relação à chuva ou às pessoas, o que tem que desenvolver é a compaixão para não apresentar respostas negativas, como raiva e ruminação. Nesses momentos, uma atitude neutra já seria suficiente para tornar o processo melhor. Não é bom ficar nutrindo sentimentos ruins — salienta Irani.
Benefícios para a saúde mental
A professora Ilana diz que, quanto maior a frequência e a intensidade de emoções como mágoa, rancor, raiva, ruminação e tristeza, mais propícia a pessoa fica a desenvolver um transtorno mental. Quando o indivíduo consegue perdoar, a ação pela qual se sentiu afetado deixa de causar dor ou sentimentos ruins. É por isso que alguns especialistas acreditam que esse processo contribuí para a saúde psicológica.
Segundo Irani, um dos pioneiros da psicologia positiva é o autor Martin Seligman. Para ele, o perdão é uma das atitudes que permitem mudar o foco das experiências negativas e gerar emoções positivas, podendo assim potencializar a satisfação com a vida e o bem-estar.
O perdão é um processo interpessoal, então diz respeito à minha relação com outras pessoas [...] Então, quando a pessoa consegue perdoar algo, pode se sentir mais leve e melhor com quem está ao seu redor
IRANI ARGIMON
Professora da PUCRS
— O perdão é um processo interpessoal, então diz respeito à minha relação com outras pessoas. Isso faz com que possa trazer mudanças nas cognições, nas emoções e no comportamento. Então, quando a pessoa consegue perdoar algo, pode se sentir mais leve e melhor com quem está ao seu redor — ressalta a professora da PUCRS.
O psicólogo Dan Montenegro, que é doutorando em Psicologia Social, acrescenta que o perdão pode ser um recurso interno importante para mediar relações e conflitos, bem como uma ferramenta para elaborar os sentimentos. No entanto, por mais que alguns estudos estabeleçam uma relação, não é garantido que, ao perdoar, a pessoa consiga resolver definitivamente suas questões de saúde mental.
De toda forma, a dificuldade de perdoar leva algumas pessoas a buscarem ajuda de especialistas, principalmente quando os problemas são relacionados a familiares, afirma Ilana.
O que não pode ser perdoado?
Para os especialistas, a definição de quais coisas não podem ser perdoadas depende muito dos valores de cada pessoa. Ilana destaca que cada indivíduo possui um conjunto de crenças que determinam seus valores. Por isso, algumas pessoas consideram certas ações aceitáveis e perdoáveis e, outras, não:
— A religiosidade é um valor pessoal, por exemplo. Se a pessoa é católica, tem crença em algo supremo, nas leis de Deus, acredita que somente Ele pode perdoar ou não. E cada pessoa tem um entendimento, de acordo com seus valores.
Montenegro alerta que, apesar de ser muito importante em nossa cultura, é necessário entender que o perdão não pode ser utilizado para naturalizar situações e relações de abuso e opressão. Irani também reforça que perdoar não significa esquecer e que não é preciso manter laços com a pessoa que te magoou.
— A pessoa pode se afastar, mas precisa se sentir bem, sem se deixar corroer pelos sentimentos negativos — enfatiza.