Os primeiros imigrantes germânicos no Rio Grande do Sul desembarcaram em Porto Alegre em 18 de julho de 1824. No dia 25, 39 chegaram a São Leopoldo (que ainda pertencia à Capital), onde estabeleceriam a primeira colônia rural-militar do Brasil, já independente. Agricultores, artesãos e profissionais liberais construiriam ali os alicerces que definiriam o futuro de milhares de famílias gaúchas.
Exatos dois séculos após a chegada dos pioneiros, diversas tradições seguem preservadas - o legado, portanto, permanece vivo. O café colonial preparado com esmero e posto à mesa da família Schneider, em Dois Irmãos, no Vale do Sinos, é prova disso. Jaqueline, 49 anos, cuidadora de crianças, é a responsável pelas receitas do lar. Na residência, a variante Hunsrückisch e o português alternam-se livremente – a língua germânica facilitou as viagens do filho Alan Kuhn, 32, à Alemanha, ainda que a cultura do país seja hoje distinta da dos antepassados.
Ativa e engajada, a viúva Marlene Schneider, 73, participa de três corais, do grupo de danças típicas alemãs, além de outras atividades e ações para ajudar a comunidade, e luta para manter os costumes vivos. A aposentada produz spritzbier (bebida gaseificada germânica), inclusive em grandes quantidades para os eventos da cidade, como o Kerb de São Miguel, do qual a família participa com entusiasmo.
— É uma tradição dos antepassados que a gente nunca pode perder, jamais. Tem muita gente que não dá mais bola para essas coisas, mas tem de manter — afirma Marlene, que se orgulha da herança germânica.
As contribuições germânicas ao povo gaúcho
Na pequena bagagem carregada para o Brasil, os pioneiros trouxeram diversas contribuições ao RS. Historiador e autor do livro sobre a imigração alemã 1824, Rodrigo Trespach destaca, principalmente, a educação como fator de transformação; a religião protestante, com o estabelecimento da primeira igreja não católica no Brasil; a valorização do trabalho; o espírito de comunidade; o senso de associativismo e cooperativismo; e, posteriormente, o desenvolvimento da culinária – como waffle e compotas – e arquitetura típicas, bem como clubes e sociedades (de ginástica, bolão, tiro, entre outros). Felipe Kuhn Braun, pesquisador sobre a imigração alemã, escritor, jornalista e detentor de um acervo de 45 mil fotos antigas, enfatiza ainda o comércio e a indústria; e os grupos folclóricos e corais, mais recentes.
Em Westfália, muitos ainda preservam elementos da cultura dos antepassados. Na cidade do Vale do Taquari, a língua co-oficial é a variante westfaliana Plattdüütsk, conhecida como Sapato de Pau – em homenagem à tradicional peça trazida pelos imigrantes para se abrigar do frio e umidade. Além da língua, a família da produtora rural Taila Hollmann, 29, cultiva o hábito da agricultura, de criar a própria carne e da comida caseira.
Os costumes são ensinados desde a infância – a família guarda um caderno com receitas que passam de geração a geração, com carinho. Taila se alegra também por viver em comunidade e participar do grupo de danças folclóricas com sapato de pau, Westfälische Tanzgruppe, do qual é coordenadora.
— Duzentos anos são muito, mas vendo o que hoje ainda é cultivado na questão da tradição alemã, a gente vê muito forte ainda essa cultura aqui na região. É muito importante que a gente evidencie isso para que possam passar mais 200 anos e a gente consiga ainda estar cultivando as tradições — ressalta Taila, que partirá em uma turnê na Alemanha com o grupo de dança, levando, pela primeira vez, a tradição alemã de volta, ao invés da cultura brasileira, com um show sobre o bicentenário.
O caminho percorrido
Após tentativas anteriores, o projeto de colonização rural-militar iniciou com o objetivo de criar colônias agrícolas, desenvolver o minifúndio e dar início à industrialização, com mão de obra livre, segundo Trespach. A iniciativa também baseava-se na ideia de que, com a independência, o Brasil precisava de um Exército, caso viesse a enfrentar uma guerra. O governo imperial decidiu enviar os imigrantes para o Sul para povoar a região e guarnecer a fronteira, devido aos problemas históricos de guerra, de modo a evitar que fosse tomada.
Os imigrantes eram de origem germânica – o termo “alemães” gera controvérsia, pois vinham de regiões distintas, já que a Alemanha só foi unificada em 1871; tratava-se, portanto, de uma confederação de Estados autônomos com o idioma em comum, que, posteriormente, formariam a Alemanha. Eles foram escolhidos pois já tinham experiência em guerras e pelo histórico de migrações para outros países. Os pioneiros vêm, sobretudo, da região do Reno. Para chegar, enfrentavam, em média, 300 dias de viagem. As primeiras levas traziam viúvos, no segundo ou terceiro casamento, com filhos e enteados (em média, sete a 10 filhos).
Na Europa, enfrentavam miséria, em função das constantes guerras, do excedente populacional, da dificuldade de alimentação e da revolução industrial, que substituiu os artesãos, conforme os pesquisadores. No Brasil, os imigrantes recebiam 77 hectares de terra, sementes, animais e ferramentas para começar uma nova vida – os solteiros deveriam servir quatro anos no Exército. Aqui, também enfrentaram adversidades, como a língua e questões religiosas, até prosperar décadas depois e construir as edificações que conhecemos.
A criação de colônias iniciou em São Leopoldo e vales próximos (a partir de 1824); Litoral Norte (1826); Litoral Sul (1850); Região Central (1840); e as regiões Norte e Oeste (depois dos anos 1870). A partir delas, surgiram outros núcleos, explica Trespach. O primeiro projeto durou entre 1824 e 1830, recebendo mais de 5 mil alemães. A partir de 1834, os projetos passaram a ser patrocinados pelas províncias. A segunda etapa da colonização ocorreu até 1871; a terceira, entre 1889-1914. Até 1922, são contabilizadas 142 colônias no RS, Estado com mais alemães. Por fim, entre 1919 e 1939, período entre guerras, ocorre a maior chegada de imigrantes, já não atrelada a um projeto de colônias.
— Eles contribuíram muito com a questão da formação do povo gaúcho, por população mesmo, mas por trabalho, por valorização da educação, da pesquisa científica, da diversidade religiosa — avalia Trespach.
Do mesmo modo que trouxeram o uso da carne de porco, aprenderam a utilizar a carne do gado. Aqui, também desenvolveram o uso do aipim e das mais diversas formas da batata, com a qual já tinham contato. Houve uma mistura de elementos, que gerou, por exemplo, a cuca. Essas modificações configuram uma cultura teuto-brasileira, na visão de Braun:
— Muitos de nós já somos brasileiros há cinco, seis gerações. Existe muito forte esse entendimento dessa cultura, dessa história e dessas tradições teuto-gaúchas, teuto-brasileiras. Se trouxe uma cultura e se transformou. Eu acho que é feliz quem pode conhecer mais da sua própria história e preservar o que deseja.
Celebrações do Bicentenário
Para comemorar, o governo do Estado lançou uma programação especial para o Bicentenário da Imigração Alemã, que inclui concertos da Orquestra Sinfônica de Porto Alegre (Ospa), projeto de documentação da imigração com estudantes na Univates, exposições, simpósios, festivais e outros eventos.
— Estamos celebrando a vida em todos os seus aspectos. Alle Menschen werden Brüder (Todas as pessoas tornam-se irmãs), verso presente na Nona Sinfonia de Beethoven, tem sido o mote filosófico do Bicentenário: a fraternidade — afirma Rafael Gessinger, presidente da Comissão do Bicentenário.