Quando a realidade pode parecer um pesadelo, torna-se difícil descansar. Durante e após a enchente que assolou o Rio Grande do Sul em maio, sobram relatos de pessoas que não conseguem ter uma boa noite de sono. Um dos motivos comuns para isso são sonhos ruins. O neurologista e coordenador do Laboratório do Sono da Santa Casa de Porto Alegre, Fernando Stelzer, explica que, em momentos de catástrofe, é esperada a recorrência de pesadelos entre a população:
— Especialmente para quem foi diretamente afetado pela enchente, seja porque perdeu a casa, teve que sair correndo, correu até risco de vida ou teve que ser socorrido — diz Stelzer.
Ainda, pessoas que não foram afetadas diretamente também podem vivenciar problemas de sono. A doutoranda em Psicologia Social e Institucional da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Laura Barcellos Pujol de Souza pesquisa sobre a dimensão coletiva do sonhar. Segundo os relatos recebidos pela psicóloga, os temas mais recorrentes entre os sonhos sobre a enchente são: água lodosa que sobe de nível, a necessidade de fugir para lugares altos, resgates de pessoas e animais e, inclusive, a “vida normal” em uma cidade alagada.
— Por exemplo, eventos comuns em Porto Alegre. Teve uma sonhadora que sonhou que a Feira do Livro só tinha dois estandes porque o resto estava tudo alagado — conta a doutoranda.
A função dos sonhos nesse contexto, segundo a psicóloga, é contribuir para a elaboração de traumas. Além disso, os sonhos podem fazer parte da especulação sobre o futuro, podendo processar os medos de quem sonha.
— Se a gente está sonhando, ainda que seja um pesadelo, é positivo. Porque significa que a gente está elaborando esse trauma enquanto ele está acontecendo — diz.
Em um âmbito coletivo, o sonho ganha outra função: de alerta. Para Laura, a enchente é um evento coletivo relacionado a outros eventos climáticos e ambientais que servem de aviso para que a sociedade mude seu modo de vida.
— O sonho também está produzindo essa reflexão de construção de novas alternativas para o futuro.
Pesadelos recorrentes
Por mais esperada que seja a presença de sonhos ruins, para Fernando Stelzer, é necessário entender o quanto isso afeta a vida das pessoas. Em casos mais graves, nos quais os pesadelos frequentes impedem que a pessoa siga seu cotidiano, isso pode ser um indicador de outras condições.
— É muito comum esse grau de estresse levar a pessoa a um aumento de risco para aquilo que a gente chama de transtorno de estresse pós-traumático. Não quer dizer que a pessoa tendo pesadelo vai ter esse diagnóstico — destaca.
No contexto dos abrigos, onde é mais difícil controlar condições de conforto, luminosidade e barulho, o neurologista levanta a possibilidade dos atritos entre as pessoas ser decorrente da privação de sono. Isso pode acontecer porque um dos efeitos do sono de má-qualidade é a piora na reação emocional no dia seguinte, deixando as pessoas mais irritadiças.
Além disso, para pessoas afetadas pela enchente e desalojadas que estão com problemas de sono, a melhor opção é o atendimento psicológico, segundo Stelzer. Por mais que os remédios chamados de “tarja preta” sejam procurados, o neurologista não considera que sejam sempre uma boa opção, pois reduzem a capacidade de adaptação a esse tipo de estresse.
— O atendimento e a simples escuta das angústias dessa pessoa já ajudam ela, diminuir a sua ansiedade e a dormir melhor. Não vou falar que uma conversa só faz passar tudo, não tem como, mas já ajuda bastante — fala.
Insônia aguda
Mesmo sem ter sido diretamente afetado pela enchente, por experienciar e fazer parte desse momento, pode ser que se sinta falta de sono. A insônia aguda, diz o neurologista, ocorre quando uma pessoa que tem sono regular, de repente, passa a ter problemas para pegar no sono ou de sono quebrado.
Conforme o cenário da crise vai melhorando, Stelzer alerta para o risco da insônia aguda se tornar crônica, caso hábitos indesejáveis sejam desenvolvidos nesse tempo. O aumento no uso de telas perto da hora de dormir, a piora na alimentação e o abandono das atividades físicas podem fazer com que a insônia vire um elemento presente na vida a longo prazo.
Para evitar a permanência da insônia, Stelzer diz que é necessário cuidar do sono e da saúde mental. Por mais que reconheça que, atualmente, as pessoas podem se encontrar em situações muito diversas de condições para dormir, ele recomenda que, na medida do possível, as seguintes atitudes sejam tomadas:
- Se manter ativo, especialmente se a pessoa não esteja trabalhando no momento
- Ir para cama somente quando tem sono
- Evitar cafeína, seja em forma de cafés, chás, chocolates ou energéticos, pelo menos seis horas antes de dormir
- Tentar ter um ambiente saudável para o sono, com redução de luminosidade e barulho
- Não tomar banho muito quente à noite
- Reduzir estímulos 2h antes de dormir, seja em questão de atividade física, trabalho ou consumo de telas
- Realizar alimentação leve à noite
*Produção: Fernanda Axelrud