Talvez não exista comprovação científica, mas amor, carinho e família também são “remédios” para alguns casos. O tratamento de Maria Iorilda Florência Fernandes, paciente em cuidados paliativos no Hospital Clínicas de Porto Alegre, inclui afeto, aconchego familiar e samba. Aos 82 anos, na última terça-feira (11), ela recebeu uma homenagem para celebrar a vida, organizada por familiares após incentivo da equipe multidisplicar de cuidados paliativos (veja o vídeo ao fim desta matéria).
Exemplo de “força, amor e luta” foi como a família descreveu Dona Maria, como carinhosamente é conhecida, internada no HCPA desde o dia 28 de maio. Paciente com uma doença aterosclerótica arterial, condição que obstrui o fluxo sanguíneo em órgãos vitais, Maria entrou em cuidados paliativos há poucas semanas.
A paciente sofreu após complicações da doença, com quadro de saúde irreversível. Em dezembro de 2023, ela já havia passado por um doloroso procedimento de amputação do pé esquerdo, como tentativa de frear o desenvolvimento da doença, o qual lhe trouxe abalos emocionais, conforme relatou a filha, Rosimari Fernandes. Antes de iniciar o acompanhamento com a equipe de cuidados paliativos, outro procedimento similar seria realizado, mas a própria paciente demonstrou receio com a realização.
— Ela pegou na minha mão, olhou bem dentro dos meus olhos e deu um grito. "O quê? Não mesmo. Não!" Veio a informação que minha mãe estava com quase todos os órgãos comprometidos, daí nós questionamos quais seriam os benefícios de ela amputar novamente, se isso curaria ela. Fomos ditos que não, então qual é o sentido? Era para dar uma qualidade de vida temporária. Ficamos abalados, tudo é muito novo. (...) Eu disse, então não, minha mãe precisa ter dignidade no final da vida dela — contou Rosimari.
A dor virou companheira de Dona Maria, assim como a fé e o amor também nunca a deixaram de acompanhar. Hoje, o tratamento visa evitar as dores e, principalmente, celebrar sua vida e dar dignidade aos seus dias. Parte dos cuidados envolve o afeto da família e resgatar coisas importantes para Dona Maria, como o samba.
— Então, foi uma forma de eu conseguir trazer respeito e dignidade e falar sobre a vida com eles (família). Mostrar que, sendo paliativo, não é morte. Sendo o contrário, é a gente falar em vida enquanto há vida — explicou a médica residente Mariana Ramos Vieira, responsável por propor à família de Dona Maria a homenagem.
Para Rosimari, a conversa com a equipe médica foi uma forma de desmitificar a ideia da família sobre cuidados paliativos, antes tão associada à morte.
— Ela trouxe de uma forma muito mágica, nos disseram que o paliativo não é morrer. É morrer, mas também tem vida. Essa pessoa, esse ser humano tem vida e tem dignidade nessa vida, tem que ter esse tempo, com todos os cuidados, não pode sofrer e ter essa dor, merece o cuidado e o respeito. A equipe nos trouxe leveza na fala, foi falar dessa partida com leveza — expressou.
A roda de samba
A família sempre foi a grande preocupação e paixão de Maria Iorilda Florência Fernandes, que durante a vida trabalhou como doméstica e incentivou os cinco filhos a estudarem. Os encontros sempre foram repletos de alegria, cantoria, amor e muito samba, sendo Dona Maria a matriarca e base dos familiares.
Daí surgiu a roda de samba da Dona Maria no Hospital de Clínicas, organizada pela equipe médica como forma de aliviar o sentimento tanto da paciente quanto dos familiares. Com a presença de 15 familiares, entre filhos, netos e bisnetos da paciente, o momento serviu como forma de resgatar os momentos marcantes de Maria.
— Essa equipe trouxe para nós um resgate de todo esse histórico (de vida). Estávamos lá, falando de amor, falando de vida, várias músicas. E veio Não Deixa o Samba Morrer, isso daí foi feito uma analogia dentro de mim. Não é não deixe o samba morrer, não deixe a história da gente morrer, não deixa esse amor se apagar, o amor que foi plantado, regado, em 82 anos por essa mulher, não vai morrer — contou a filha.
Dona Maria, que fez questão de abraçar e beijar cada familiar presente. A cada música, mesmo acamada, dançava e deixava sua alegria evidente. Em um momento ao ser questionada por Mariana se queria retornar ao quarto para descansar, foi enfática ao dizer “quero ficar mais aqui”.
*Produção: Lucas de Oliveira