— Não estou nem pensando em nada a longo prazo, isso só vai me deixar mais angustiada. A gente só quer que baixe a água para podermos ir ver nossas casas e lavar tudo, tirar essa lama, poder dizer que minha casa está limpa, e tentar ir trabalhar.
É o que conta Dienifer Santos, 28 anos, que teve a casa alagada em Novo Hamburgo, no Vale do Sinos. Segundo ela, o sentimento é de revolta e agonia. A vendedora está há duas semanas morando na residência de um primo, junto de outras 15 pessoas, incluindo seu irmão, Felipe, por conta dos impactos das enchentes. Entre familiares, amigos e conhecidos, todos estão dividindo o mesmo teto por um único motivo: não tem nenhum outro lugar para ir.
Em sua maioria moradores do bairro Santo Afonso, onde a água chegou a subir 9,73m, pelo menos, boa parte deles tiveram seus lares tomados pela enchente, e ainda nem foi possível verificar todas as perdas, pois a localidade segue alagada. A inundação atingiu de maneira expressiva as vilas Palmeira, Marrocos e Kroeff, no bairro Santo Afonso, de acordo com a prefeitura.
O grupo foi abrigado por Neudir de Lima e sua filha, Nathalia Correia, que vivem em um sobrado no bairro Canudos. Na região, que é mais alta, a água não chegou a invadir as ruas, e eles contam com um poço artesiano. Então, não houve problema de abastecimento. Assim, a família decidiu abrir as portas do lar para acolher pessoas desabrigadas.
— Primeiro vieram os sogros da minha filha. Depois, foram vindo outras pessoas que estavam precisando, como temos espaço. Cedi meu quarto para um casal, então, estou dormindo na casa de um vizinho. Está tudo meio amontoado, mas fomos conseguindo mais colchões para todo mundo. Mas está tudo certo, agora é o momento de a gente se ajudar como pode — conta seu Neudir, 48.
Além dele, moravam na casa Nathalia, seu marido e as filha deles. Agora, são mais 12 pessoas para alimentar. Eles contam com a ajuda de igrejas e da Brigada Militar para conseguir mantimentos e outras doações para auxiliar no sustento da casa, como roupas. Muitos deles tiveram de sair de seus lares às pressas.
É o caso de Dienifer, que não conseguiu resgatar sequer seus remédios de uso contínuo e as roupas de frio para enfrentar a baixa temperatura. Por isso, a busca por doações é diária. A comerciante, que trabalha como autônoma, também perdeu as roupas que guardava em casa para vender. Cerca de 15 mil pessoas perderam parcial ou totalmente suas moradias em Novo Hamburgo, envolvendo maquinário e móveis.
Mais de 32 mil pessoas foram impactadas pelas enchentes na cidade, com cerca de 12 mil pessoas desalojadas ou desabrigadas. O município chegou a ter cerca de 6 mil pessoas distribuídas em oito abrigos. Atualmente, a prefeitura tem quatro espaços de acolhimento ativos, onde estão cerca de 3,5 mil pessoas.
Um dia de cada vez
Há histórias semelhantes por toda a Região Metropolitana. Em Esteio, a farmacêutica Potira Mirapalheta, 42 anos, está abrigada na casa de uma amiga, tendo em vista que ela e sua família tiveram os lares atingidos pela enchente. Assim, cada uma se abrigou onde conseguiu.
Potira saiu de casa no dia 5 de maio com a água no pescoço, no bairro Novo Esteio, um dos mais atingidos no município. O bairro teve cerca de 2 mil casas afetadas pela cheia, e muitas delas ficaram submersas, de acordo com a prefeitura. No prédio onde Potira morava, a água bateu no 19º degrau da escadaria. Ela precisou ser resgatada do local e, no dia, não deu nem para levar junto seu gatinho, batizado de Negreiro. Ela passou alguns dias na casa de uma tia, que ficou lotada.
— A água estava muito forte e não tinha como, era eu ou ele. Chorei horrores na escada, a água estava invadindo o prédio numa velocidade absurda. Abri o forro para ele adentrar caso entrasse água no apartamento e espalhei ração por toda a casa, mas meu coração ficou com ele e com meus quatro peixes — conta.
Dias depois, quando a água baixou um pouco, foi possível ir até o local para resgatar o animal, que está vivo. Desde o dia 10, Potira está abrigada na casa da amiga, Ana Maria Mallmann, 32 anos. Ela mora junto dos dois irmãos e da mãe, no centro de Esteio. As duas se conheceram no trabalho em 2022 e, assim que soube da situação no bairro de Potira, Ana estendeu a mão e ofereceu a casa para a colega, como havia um quarto sobrando.
— Já estávamos acostumados com alagamentos em alguns pontos da cidade. Mas algo nesta dimensão, e ter familiares e amigos desabrigados, jamais imaginaríamos algo assim. Meu sentimento é de alívio, principalmente depois que a Potira pode retornar em seu apartamento para resgatar o gatinho, e verificar que os peixinhos estavam vivos. Eu sempre digo que neste momento o mais importante é estar vivo e seguro. O nosso lema aqui é viver um dia de cada vez — relata Ana.
Cinco abrigos estão funcionando em Esteio, e os espaços estão atendendo 349 pessoas, no momento, de acordo com a prefeitura do município. A cidade chegou a ter mais de mil pessoas desabrigadas, mas muitas estão conseguindo voltar para casa. Quanto aos desalojados, a estimativa é que haja cerca de 12 mil pessoas fora de casa, ou seja, nos lares de amigos ou conhecidos.
Lar temporário para aquecer o coração
Além de abrigar pessoas, muitas famílias estão abrindo as portas para cuidar de bichinhos resgatados da enchente. Os chamados “lares temporários” estão ajudando animais de estimação que, muitas vezes, têm tutores, mas ainda não foram encontrados por eles, após a tragédia. Ou, ainda, aqueles cujos donos estão em abrigos, onde nem sempre há espaço para os pets.
Foi com isso em mente que a empreendedora Juliana Marques, de Porto Alegre, decidiu cuidar de cinco gatos resgatados – Jean Pierre, Narizinho, Pietro, Pietra e Cecília. Eles estavam passando por tratamento em uma clínica e foram encaminhados para ela, para terem mais conforto. Além destes, que estão em lar temporário, ela já tinha outros quatro gatinhos. Ou seja, são nove em casa, no total.
— O que os animais mais precisam no lar temporário é de um cantinho calmo. Esses animais não estão no estado normal deles, eles precisam descansar. Neste momento, o lar temporário é como se fosse uma casa de repouso. Espero que as pessoas possam abrir o coração para cuidar de pelo menos um animal, vai ser necessário — afirma. Juliana tem um projeto para garantir castração gratuita a gatos em situação de vulnerabilidade, batizado de Adopt a Monster.
Patrícia Zilles, que tem uma hospedagem para pets, também está com a casa cheia em Porto Alegre: ela está cuidando provisoriamente de cinco gatos e dois cães resgatados das enchentes. Alguns estavam abrigados temporariamente em uma clínica de reabilitação veterinária e outros com uma família que teve sua casa alagada. Agora, os sete bichinhos estão no conforto de um lar seguro.
— Não é possível ficar indiferente ao sofrimento, medo e desespero destas vidas. Estes animais são o amor da vida de alguém. Não sabemos se encontrarão sua família ou se precisarão de um novo lar. O que podemos fazer neste tempo é preservar vidas, cuidar e dar carinho. Nós ajudamos a salvar a vida deles e eles salvam nossa alma — diz a empreendedora.
Há, ainda, muitos animais esperando por um lar temporário, com os abrigos lotados, e também tutores em busca de seus animais perdidos. É possível conferir nesta matéria de GZH orientações sobre os animais resgatados da enchente, como ajudar e como encontrar pets perdidos.
Apoio para pessoas desabrigadas
A prefeitura de Novo Hamburgo informa que está distribuindo às pessoas desalojadas, diariamente, cerca de mil cestas de alimentação, de higiene pessoal e de limpeza nos bairros Canudos e Santo Afonso, os dois mais afetados do município. Já foram distribuídas 11,2 mil cestas de alimentação até esta segunda-feira, além de 7,5 mil kits de limpeza, 8,1 mil kits de higiene pessoal. Mais de 4,1 mil famílias foram beneficiadas com kits de roupas, incluindo peças para cada membro da família.
O município estruturou sua central de distribuição de doações na Fenac, de onde partem as entregas para os desalojados e também para abrigos, de itens como água, roupas e mantimentos. Já em Esteio, as vítimas das enchentes que tiveram suas casas atingidas podem solicitar à prefeitura colchões e um kit dormitório, que inclui coberta, travesseiro, lençol e toalha de banho.
Os moradores de Esteio também podem buscar doações nos Centros de Referência em Assistência Social (CRAS), onde estão sendo entregues roupas, kits de limpeza e de higiene pessoal, e também cesta básica. As famílias podem ir até o CRAS Centro (Rua Pedro Lerbach, 426), CRAS Sueli Luiza Peres (Rua Vereador Ernesto Menezes, 52), CRAS Território de Paz (Rua Orestes Pianta, 206) e CREAS Girassol (Rua General Machado Lopes, 58). Também estão sendo distribuídas doações no Parque de Exposições Assis Brasil, como o espaço fica no bairro Novo Esteio, próximos às famílias mais afetadas.
O governo do Estado também anunciou medidas para garantir auxílio financeiro às famílias impactadas, como o programa Volta por Cima. Os pagamentos por meio do Cartão Cidadão já iniciaram para 7 mil famílias gaúchas identificadas pelas prefeituras. A ajuda é de R$ 2,5 mil para famílias em situação de pobreza e extrema pobreza cadastradas no CadÚnico, residentes em regiões inundadas verificadas por imagens de georreferenciamento. A previsão do governo é de que até o dia 24 de maio os pagamentos contemplem 40 mil famílias.
Outra medida econômica de auxílio é o pagamento do PIX SOS Rio Grande do Sul. A ajuda de R$ 2 mil por família é destinada a gaúchos que não estão no Programa Volta por Cima. Inicialmente, foram identificadas 23 mil famílias com renda até três salários-mínimos, com início dos pagamentos em Encantado e Arroio do Meio. Os auxílios vão priorizar os municípios em calamidade pública.
O presidente Luiz Inácio Lula da Silva também anunciou, na última quarta-feira (15), o pagamento de um benefício de R$ 5,1 mil para as famílias vítimas da enchente e a criação de um ministério para articular a reconstrução do Estado. Batizado de Auxílio Reconstrução, o benefício será pago a quem sofreu perdas nas inundações, atestadas pela Defesa Civil de cada município. O dinheiro será depositado via pix na Caixa Econômica Federal. Estimativa do governo aponta 200 mil famílias contempladas, num repasse superior a R$ 1,2 bilhão.