Por Liz Nunes Ramos e Roséli Olabarriaga Cabistani
Membros da Associação Psicanalítica de Porto Alegre (Appoa)
“O meu pai era paulista, meu avô, pernambucano, o meu bisavô, mineiro, meu tataravô, baiano. Tenho antepassados negros e indígenas, cujos nomes meus antepassados brancos trataram de suprimir da história familiar. Como a imensa maioria do povo brasileiro, trago nas veias sangue do açoitado e do açoitador, o que ajuda a nos explicar um pouco.”
(Trecho do discurso de Chico Buarque de Holanda ao receber o Prêmio Camões 2019, entregue no dia 24 de abril de 2023, no Palácio Nacional de Queluz, em Portugal)
Neste fragmento de discurso de um dos maiores representantes da música popular brasileira encontramos elementos que nos permitem introduzir uma questão muito complexa e presente em nosso tempo, que é a das identidades e identificações.
O tema das identidades tornou-se um campo político de lutas emancipatórias, por direitos e de muitas tensões, desde que a ideia de um sujeito unificado e estável, das sociedades tradicionais, nações e mercados comuns, foi abalada pelas transformações sociais que a modernidade e a chamada modernidade tardia introduziram no quadro de referências da contemporaneidade. Sobre esse tema encontramos inúmeros e preciosos escritos no campo das ciências sociais, aos quais remetemos o leitor interessado.
A Jornada de Abertura dos estudos do ano de 2024, da Associação Psicanalítica de Porto Alegre (Appoa), é um convite a interrogar e aprofundar o tema das identificações, conceito fundamental e complexo no interior da psicanálise, trabalhado por seu criador, Sigmund Freud, e ampliado por outros psicanalistas, em especial por Jacques Lacan.
Como a psicanálise é uma práxis nascida na virada do século 20, a concepção de sujeito proposto por ela já nasce com a ideia de um sujeito não mais unificado, mas dividido. A imagem de um eu inteiro e unificado é algo que vai sendo construído na pequena criança a partir de seus laços com os outros, no “espelho” do olhar do Outro, o que inaugura também sua entrada na linguagem e na cultura, com tudo que essa transmite a cada tempo histórico. Porém, a própria entrada na linguagem divide o sujeito, além de humanizá-lo.
O contraponto ao eu unificado serão os traços, a dimensão do sujeito do inconsciente que aí se inaugura, um saber diferente do conhecimento que o representará no laço social e nos quais poderá reconhecer-se em sua singularidade, ainda que nunca idêntico aos ideais imaginários, seus e de seus pares.
O fragmento do discurso de Chico Buarque nos ajuda numa aproximação diagonal com esses conceitos de identidades e identificações, que abrem a muitas elaborações no campo da psicanálise. Ao referir seus antepassados de tantas e diversas origens, nosso poeta diz das diferenças nas quais se reconhece. Reconhecimento é mais um dos conceitos solidários ao tema que cercamos. Abordarmos a própria branquitude e a miscigenação que constitui o povo brasileiro retira o véu que busca apagar nosso passado escravocrata e de sofrimentos. “Trago nas veias o sangue do açoitado e do açoitador” expressa em verso os conflitos inconscientes que fraturam os laços sociais e determinam, inclusive, políticas públicas adversas à grande parte da população. As identidades, quando unificadas, não passam de processos mistificadores que silenciam o que não queremos ou não suportamos reconhecer em nossa constituição. Critérios como a cor de pele, de características físicas, como a textura do cabelo ou lábios volumosos, surgem em diferentes contextos como tentativas débeis de sustentar a racialização, tão utilizada nos processos segregatórios, nos discursos nacionalistas, que buscam criar a unicidade de um povo ideal.
As palavras identidade e identificação derivam do prefixo idem, do latim igual, o mesmo. Aí reside uma espécie de autoengano que a psicanálise questiona: a que serve cultivar o idêntico? Quando dizemos “eu mesmo”, temos um tipo de duplicação do eu, que é preciso interrogar, sobre quem é “mesmo”, igual. Seria essa uma tentativa de fixar um eu que é evanescente, desconhece suas determinações e, não raro, é impotente para livrar-se dos sintomas que engendra?
Outra questão cara à psicanálise é a dos diagnósticos que fixam identidades e correm o risco de determinar destinos. Esse fechamento produz obstáculos a que os sujeitos possam encontrar vias próprias para lidar com suas dificuldades. A ética psicanalítica propõe trabalhar com hipóteses diagnósticas, abertas, de maneira a não encarcerar as pessoas em diagnósticos que funcionam como identidades imutáveis, apostando sempre na força criativa da palavra.
Identificação primária, identificação imaginária, identificação simbólica, identificação a um traço (unário), identificação histérica, todas essas formas de nomear as identificações, já dizem do tamanho do desafio colocado. É interessante marcar que quando, nomeamos a identificação, estamos sempre nos referindo a processos psíquicos que implicam a estruturação subjetiva no seu enlace com a função do Outro e, portanto, da linguagem.
Identificações
Este é o tema da Jornada de Abertura da Associação Psicanalítica de Porto Alegre (Appoa), marcada para o próximo sábado (6/4), das 10h às 18h30min, no Teatro da Unisinos (Av. Nilo Peçanha, 1.600). A presidente da Appoa Roséli Cabistani fará a abertura do evento, que contará com apresentações de trabalhos da psicanalistas Liz Nunes Ramos, Amanda Pereira, Ana Laura Giongo e Elaine Fogel. Inscrições em appoa.org.br.