Se a palavra familiar é usada quando algo é conhecido ou íntimo para alguém, crianças e adolescentes que precisam ser afastados de suas famílias de origem são levados a ambientes estranhos a eles. Para tornar esse processo menos traumático, o Juizado da Infância de Juventude de Santo Ângelo, na região das Missões, investe há 10 anos em um modelo de acolhimento que, ao invés de encaminhar esses meninos e meninas para abrigos ou casas lares, conta com famílias parceiras que os recebem em suas casas e os integram em seus cotidianos.
O foco do programa Família Acolhedora é proporcionar o afeto que, longe de suas famílias de origem, faz falta à formação das crianças e dos adolescentes - é por acreditar no poder desse afeto que o juiz Luís Carlos Rosa, do Juizado da Infância de Juventude do município, investiu nesse modelo, que, hoje, é usado para atender de 80% a 85% dos meninos e meninas que precisam de acolhimento na cidade da região das Missões. O número de acolhidos muda toda semana, já que se trata de uma situação temporária que culmina na adoção dessas crianças, no retorno para a família de origem ou para a família estendida, normalmente. Quando a reportagem de GZH esteve na cidade, por exemplo, havia 26 meninos e meninas acolhidos por famílias e cinco em instituições. No Brasil, a média percentual acolhida em famílias é de menos de 5%.
— Eu vejo que é uma afronta aos direitos de crianças e adolescentes, tendo a possibilidade de elas serem cuidadas por uma família, colocar elas numa instituição. Por mais que a instituição desenvolva o trabalho possível dentro das suas condições, nunca vai conseguir substituir a família — observa o magistrado.
Ao contrário dos abrigos e casas lares, no acolhimento familiar, cada residência recebe apenas uma criança, ou ela e seus irmãos, uma vez que não é permitido separá-los. A família cadastrada recebe um salário mínimo mensal para cada acolhido e tem como orientação proporcionar a esses meninos e meninas uma convivência sem distinção em relação aos filhos biológicos — as crianças e adolescentes acolhidos vão junto a eventos sociais, religiosos e viagens de férias, por exemplo.
— No abrigo, é mais regrado: eles têm saídas para ir à escola e alguns eventos do abrigo, mas quase não frequentam a sociedade. No Família Acolhedora, eles têm uma vida social, uma vida religiosa, momentos de lazer, festas de aniversário. Eles são integrados à família mesmo — explica Adriane da Fonseca Prestes, que há seis anos participa do programa junto de seu marido, Adilson Luiz da Silva.
Segundo Adilson, tudo o que o filho deles ganha, as crianças acolhidas ganham também. Ele lembra com carinho do último grupo de irmãos que a família recebeu — eram quatro, que saíram do acolhimento em outubro.
— Nos disseram que viriam quatro irmãos, mas vieram três, porque um menino fugiu e só chegou às 23h. Três meses depois, teve uma audiência no Fórum e eu disse: “Agora tu pode fugir”. E ele disse que, antes, não sabia o que era uma família acolhedora — lembra.
No Família Acolhedora, eles têm uma vida social, uma vida religiosa, momentos de lazer, festas de aniversário. Eles são integrados à família mesmo."
ADRIANE DA FONSECA PRESTES
Participante do projeto
O casal guarda com carinho fotos e lembranças de cada criança que passou pela sua casa. Reconhecem que a hora do adeus é difícil, mas que deixam claro que aquele é um acolhimento de passagem desde que o menino ou a menina chega.
— É uma situação difícil, mas necessária. Alguém tem que acolher — comenta Adriane.
Muito mais do que uma ocupação
Clarice Almeida acolhe desde o início do ano dois irmãos - uma adolescente de 14 anos e um de 12. Antiga no programa ao lado de seu marido, Leandro Almeida, diz que se cadastrou porque queria encontrar uma ocupação e descobriu que o Família Acolhedora era muito mais.
— Eu vi que isso mudou a minha família também, os meus filhos. É um amor, uma troca, sabe? Não são só eles que estão ganhando. A gente está ganhando também. A gente aprende todo dia com eles e se torna uma pessoa melhor — analisa Clarice.
Antes de ir para a casa de Clarice, a adolescente e seu irmão moravam em um abrigo. A menina aprovou a mudança:
— Lá, a gente não podia sair muito. Aqui nós saímos, passeamos com eles. Aqui, a gente pode conhecer mais pessoas na vizinhança.
No abrigo, a menina dividia um quarto com outras oito pessoas. A mais velha do grupo, aproveitava quando os menores iam para a sala assistir TV para conseguir estudar. Agora, sente que consegue se concentrar melhor.
No ano que vem, Clarice planeja organizar uma festa de 15 anos para a adolescente, com direito a salão, vestido e ensaio fotográfico. Para ela, um dos grandes aprendizados durante esse tempo de participação no programa é que, muitas vezes, coisas simples são vivências que aqueles meninos e meninas nunca tiveram.
— São coisinhas tão pouquinhas, sabe? A primeira vela que assopraram num aniversário, conhecer a praia, comprar material escolar. São coisas tão cotidianas, que tu não se dá conta de que talvez uma criança nunca tenha feito isso. Uma criança nunca teve uma festa de aniversário até os 14 anos. Pra mim, isso é coisa que não podia existir, mas, infelizmente, existe, e a gente está fazendo a diferença na vida dessas crianças — relata, com lágrimas nos olhos.
Uma criança nunca teve uma festa de aniversário até os 14 anos. Pra mim, isso é coisa que não podia existir, mas, infelizmente, existe, e a gente está fazendo a diferença na vida dessas crianças."
CLARICE ALMEIDA
Participante do projeto
Além das famílias cadastradas no programa, os acolhidos são atendidos por uma equipe multidisciplinar, composta por duas psicólogas, duas assistentes sociais, uma psicopedagoga e uma coordenadora. Elas trabalham em sistema de plantão e, quando o Conselho Tutelar entra em contato para relatar uma necessidade de acolhimento, de imediato buscam alguma das famílias que estão na lista de espera para encaminhar a criança ou o grupo de irmãos para a nova moradia. A partir dali, acompanham regularmente o dia a dia dos acolhidos.
— Tem crianças que demandam um atendimento mais frequente, outras não. Vamos tomando pé sobre o histórico daquela criança, conversando com a família acolhedora e também com a família de origem. Também participamos das audiências de acompanhamento, de três em três meses, para verificar a situação das crianças — relata a psicóloga Geovana Vieira Reis.
Em 10 anos, 205 crianças passaram pelo Família Acolhedora em Santo Ângelo. Hoje, 14 famílias estão acolhendo e 15 estão na lista de espera.
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